01/04/16 |   Estudos socioeconômicos e ambientais

O desperdício nosso de cada dia

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Foto: Priscilla Rodrigues Castro

Priscilla Rodrigues Castro -
Nas ruas de São Paulo, próximo à Vila Madalena, sacos de náilon cheios de frutas, verduras e legumes são suspensos todos os dias por guinchos para terem como destino algum aterro da cidade. Os alimentos ainda estão em condições de consumo, mas não seriam aceitos para venda no dia seguinte. Cerca de 500 quilos jogados fora na feira da Cayowaá multiplicados por 871 feiras livres cadastradas apenas na cidade de São Paulo e acrescidos do desperdício no âmbito familiar resultam em uma montanha de alimentos descartados, uma situação que deveria ser mais bem estudada.
 
Foi o que fez Gustavo Porpino, analista da Embrapa e à época doutorando da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo. Ele procurou conhecer o comportamento dos consumidores de classe média baixa, em contraponto à ideia de que apenas os mais abastados esbanjam comida à mesa. Trabalhos anteriores já relatavam excessos nos estratos sociais com alto poder aquisitivo em países como Dinamarca, Holanda e Inglaterra. "Em volume, a maior parte das perdas nos países em desenvolvimento está no início da cadeia, mas em  percentuais de alimentos que chegam até a etapa de consumo, o desperdício também é elevado em países como o Brasil", justifica Porpino.
 
Perdas ocorrem no começo da cadeia produtiva – pós-colheita, armazenamento e processamento – e o desperdício, no fim, nos âmbitos do varejo e do consumo. E, por haver um senso comum de que nos países em desenvolvimento o problema está no início da cadeia, os estudos se limitaram a investigar esse aspecto. A banana, por exemplo, é apontada como um dos alimentos com maiores perdas. Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), o Brasil registra prejuízo de R$ 3,8 bilhões por ano no escoamento da safra de grãos e, em 2014, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estimou que 6% das perdas globais ocorrem na América Latina. 
 
Essas questões instigaram o doutorando: "Percebi que o Brasil podia ser um caso sui generis. Sabemos   que existe uma relação entre status e comida à mesa, e o brasileiro valoriza muito a fartura, um traço cultural forte presente em todas as classes sociais e, portanto, também no contexto de famílias de baixa renda". A proposta foi investigar de forma qualitativa – uma vez que todos os estudos a que o analista teve acesso propunham uma abordagem quantitativa – o itinerário do alimento em residências brasileiras e estadunidenses, desde o planejamento da compra até o descarte, e identificar as causas desse fenômeno, em um trabalho intitulado "Desperdício de alimento em famílias de classe média baixa: análise qualitativa dos antecedentes e uma tipologia dos desperdiçadores".
 
 
Para se ter uma ideia  da dimensão dessa questão, enquanto 2,2 bilhões de pessoas vivem próximas ou em situação de pobreza, a FAO alerta que um terço dos alimentos produzidos para o consumo humano é perdido, chegando a 40% nos países ricos. Em lares britânicos, por exemplo, é desprezado o equivalente a seis refeições por semana, ou 270 quilos por ano. Nos Estados Unidos, em um ano, cada família, perde US$ 2.200 em alimento. O total descartado chega a 35 milhões de toneladas. E o pior: esse número pode ser ainda maior devido às dificuldades de mensurar o quanto se perde no âmbito dos domicílios.
 
Além de ser um problema econômico e social, o descarte representa mau uso dos recursos naturais. Cerca de 28% das terras agricultáveis do mundo são usadas e 250 km3 de água são aplicados para produção de alimentos que nunca serão consumidos, gerando 3,3 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa.

O autorretrato das famílias        

Em busca de evidências de que o desperdício é de fato um problema para a classe média baixa brasileira, Porpino conversou com 30 famílias do Brasil, da zona leste de São Paulo e do Itapoã (cidade-satélite do Distrito Federal) e  outras 20 de quatro regiões diferentes do condado de Ithaca-Tompkins, nos Estados Unidos. Foram realizadas entrevistas em profundidade e depois as famílias foram observadas, além de fotografados os ambientes de estoque, preparo, consumo e descarte de alimentos em suas residências.
 
Uma vez definida a metodologia etnográfica para conhecer de perto a realidade a ser estudada, com coleta de dados no contexto em que ocorrem as práticas, o autor do estudo observou diversas etapas relacionadas ao consumo dos alimentos: os diálogos que antecedem a compra e o planejamento; a escolha do local – mercado ou feira; o preparo e o armazenamento dos alimentos; o descarte. "Descobrimos que o desperdício de alimentos é prevalente entre as famílias. A amostra pode parecer pequena, mas os resultados são consistentes", afirma Porpino.
 
Algo que chama a atenção é que, numa primeira sondagem, a maior parte das mães negou descartar comida em suas casas. Foi recorrente essa afirmação no início da entrevista, mas com o uso de técnicas projetivas, em que o entrevistado narra episódios supostamente ocorridos com outras pessoas, o problema veio à tona e as mães passaram a se autodescrever mais precisamente. Porpino explica: "Os autorrelatos tendem a ser imprecisos e subestimam o desperdício. Eles (os entrevistados) não têm consciência ou não o assumem. Mas ao longo da entrevista fica fácil perceber que ele existe, geralmente relatado como prática corriqueira entre vizinhos ou pessoas próximas".
 
A partir da observação, constataram-se duas etapas críticas – antes do preparo dos alimentos e no armazenamento pós-preparo –, ambas gerando muito descarte. Essa percepção foi possível devido ao método utilizado, que possibilitou captar as discrepâncias nos discursos, somadas a outra estratégia adotada pelo doutorando – fotografar os diversos ambientes relacionados com o alimento. "Imagens são importantes para distinguir o que os consumidores dizem que fazem e o que eles realmente fazem. Por isso, a importância das observações in situ", enfatiza.
 
Um dos fatores para a existência das contradições nessa autopercepção inicial é a "procrastinação do desperdício" apontada no estudo. As sobras são guardadas, ou seja, não vão imediatamente para o lixo. Isso dá a sensação de que não há descarte, já que o alimento poderá ser consumido posteriormente, o que nem sempre acontece por causa da preferência pela comida recém-preparada, comportamento mais observado no Brasil do que nos Estados Unidos. 
 
Já nos Estados Unidos, dois hábitos típicos do país impactam as famílias: o alto índice de consumo de alimentos processados, vendidos em pacotes grandes, e de comfort foods, como biscoitos recheados, sorvetes ou outras guloseimas que ajudam no alívio das tensões e são oferecidas aos filhos como forma de afeto.
 
"Encontramos evidências, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, de que as famílias de classe média baixa também desperdiçam uma quantidade considerável de alimentos", conclui Porpino. Mas, de forma geral, os fatores que levam ao desperdício são os mesmos nos dois países, apesar de as causas que os explicam serem distintas. No Brasil é evidente a hospitalidade, enquanto nos Estados Unidos, o afeto. Mesmo sendo intenções positivas, causam prejuízos.

O paradoxo social e econômico

Uma vez comprovado que as questões culturais e comportamentais agravam o desperdício de alimento, como aponta o trabalho de Porpino, foram listadas cinco categorias de antecedentes que atuam nesse fenômeno.
 
A compra mensal abundante – feita por diversos motivos, como medo de que falte suprimento ao longo do mês e por ainda haver resquícios da cultura adquirida na época da hiperinflação, quando havia escassez de alimentos nos mercados – é a primeira da lista. "Por receio de que o dinheiro não dure até o fim do mês, é comum as famílias fazerem a compra mensal logo após receber o salário. Eu fotografei estoques com 18 garrafas de óleo, 15 quilos de arroz, oito de feijão, mesmo em casas com apenas um casal e um filho", relata Porpino. Nessa etapa, ocorre com frequência a aquisição excessiva de produtos devido a compras por impulso, promoções do tipo pague 2 e leve 3 ou ainda por desejo de demonstrar status ou poder em sua comunidade.
 
A segunda categoria de antecedentes é o preparo abundante de alimentos, que também se relaciona ao gosto pela fartura e à busca por status, mas pode ocorrer em decorrência da hospitalidade dos brasileiros, afinal "sempre há espaço para mais um à mesa". Esse costume está aliado à falta de planejamento das quantidades a serem preparadas, por sempre existir uma expectativa na chegada inesperada de alguma visita, o que acaba sendo fator importante de contribuição para o desperdício.
 
O gosto por comidas frescas, recém-preparadas, que, consequentemente leva à rejeição de sobras do dia anterior, é outro ponto a ser considerado nessa conta. A prática é responsável pelo descarte de aproximadamente 20% do arroz cozido nas famílias de baixa renda estudadas. Pão e hortaliças também são perdidos com frequência. Entre as famílias pesquisadas no Brasil, 67% mencionaram ter desperdiçado sobras de arroz na semana da entrevista, quase metade (46%) citou ter jogado feijão ao longo da semana, e 38% reportaram ter levado ao lixo tanto arroz quanto feijão.
 
Um item inusitado identificado no estudo é a influência dos animais de estimação. A "desculpa" de dar o restinho do arroz, do feijão, um pedacinho de carne para os pets leva ao não armazenamento de alimentos que poderiam ser consumidos pela família no dia seguinte. Mesmo aquelas que não têm cachorro ou gato em casa deixam as sobras para os animais da rua.
 
O quinto e último fator destacado é a conservação inapropriada dos alimentos já preparados, como explica Porpino: "É comum o uso de potes de margarina ou de outros sem vedação adequada para guardar o feijão ou a carne". Maiores quantidades também são opções para reduzir o tempo gasto com o preparo dos alimentos. Mas o arroz, cozido a cada dois dias em grande quantidade, e o feijão, a cada três, não são acondicionados como deveriam: "Depois de almoçar ou jantar, o arroz é normalmente deixado na panela, em cima do fogão, até a refeição seguinte. Em dias de calor, ele é levado à geladeira, ainda dentro da panela", ressalta.
 
Curiosamente, os resultados mostram que as estratégias apontadas por especialistas financeiros como eficientes para economizar dinheiro − frequente recomendação de fazer a compra mensal, adquirir embalagens maiores, a preferência por supermercados e cozinhar a partir do zero, ou seja, sem uso de congelados ou produtos pré-preparados –  levam as pessoas a gastarem mais a longo prazo se não houver planejamento adequado das compras e das porções de preparo. "Na verdade, as pessoas ainda não se conscientizaram de que quando jogam comida fora elas estão perdendo dinheiro", alerta Porpino.

Tipologia do desperdício

Outro enfoque do estudo estabeleceu os perfis das entrevistadas, que foram classificadas em tipos. As "mães carinhosas" (caring mothers) querem prover a família e acabam se excedendo principalmente na compra de comfort foods como forma de demonstrar afeto e cuidado. "O estoque de comfort foods tende a ser amplo, principalmente nas famílias americanas. Servem tanto para prover conforto emocional para quem consome, quanto para agradar às crianças. Essa diversidade de guloseimas leva ao hábito de beliscar muito entre as refeições, o que termina aumentando a quantidade de sobras do jantar", informa Porpino.
 
As "cozinheiras abundantes" (heavy cooks), como o próprio termo explica,  preparam grandes porções e valorizam a fartura à mesa, por status ou hospitalidade. Delas se ouve frequentemente a típica frase: "É melhor sobrar do que faltar".
 
Há ainda as "desperdiçadoras de sobras" (leftover killers). "Comer o que sobrou de ontem é muito mesquinho. Eu prefiro o arroz fresquinho" – essa frase ouvida por Porpino define como pensa essa categoria. Uma observação curiosa é que às quintas e às sextas-feiras há maior probabilidade de que as sobras tenham a lixeira como destino, já que os fins de semana são mais propícios para celebração e a comida tem que ser sempre nova.
 
A quarta categoria inclui as "procrastinadoras" (procrastinators), que não se sentem à vontade para descartar o que ficou nas panelas. Então, guardam as sobras na geladeira, mesmo sabendo que provavelmente não serão consumidas posteriormente. "Notei uma certa relação entre a religiosidade e essa procrastinação", observa. A consciência de que o desperdício é um problema social foi facilmente notada na pesquisa, com um forte sentimento de que descartar alimento é um comportamento impróprio ou mesmo "pecaminoso". "Elas guardam para mitigar a sensação de culpa de estar jogando comida fora", completa. Essa prática foi detectada tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, mas predominantemente em famílias norte-americanas.
 
Por último, as "mães versáteis" (resourceful mothers) são as que não desperdiçam ou o fazem em menor quantidade, pois reinventam a partir das sobras ou não veem problemas em servir alimentos preparados anteriormente: "Da sobra do arroz, ela prepara um risoto ou pega o feijão, mistura com farinha e linguiça e faz uma espécie de feijão tropeiro", exemplifica. Esse perfil também mostra tendência em planejar a compra e a quantidade a ser preparada.
 
O estudo apontou que no Brasil as mães são majoritariamente "desperdiçadoras de sobra" (42%) e "cozinheiras abundantes" (21%), enquanto nos Estados Unidos elas são, prioritariamente, "cozinheiras abundantes" (30%), "carinhosas" e "procrastinadoras" (ambas com 20%).

 

 

 

 

 

 

 

Políticas públicas e outras ações

A principal diferença entre o Brasil e os Estados Unidos percebida por Porpino diz respeito ao reencaminhamento de alimentos aos mais necessitados. Nos Estados Unidos, há um programa bem estabelecido de segurança alimentar, com envolvimento do governo e da iniciativa privada. A estrutura conta com bancos de alimentos, que armazenam o que recebe do varejo, de fazendeiros e de associações de produtores, ou seja, não apenas alimentos industrializados, mas também legumes e hortaliças, e encaminham às chamadas food pantries (despensas), responsáveis pela distribuição gratuita às famílias carentes. É um programa de grande alcance, que conta com 60 mil despensas e 200 bancos de alimentos apenas no Feeding America, a maior rede do País. "Uma novidade para reduzir o desperdício nos Estados Unidos são os supermercados sociais, que não visam ao lucro, a exemplo do Fare & Square e do Daily Table, que servem para escoar a produção de legumes e hortaliças imperfeitos e vender produtos perto do prazo de  vencimento com preços bastante reduzidos", complementa.
 
O Brasil registrou queda representativa no número de pessoas que não têm acesso a alimentos suficientes para sua nutrição diária. A chamada situação de insegurança alimentar grave atinge atualmente 3,5% da população nacional. Apesar disso, ao considerarmos os outros níveis – moderado e leve –, esse número sobe para 22,5%, o equivalente a 52 milhões de pessoas. Para que ações semelhantes às desenvolvidas no país norte-americano sejam exitosas também no Brasil, há ainda empecilhos legais. "Precisamos que seja aprovada a Lei do Bom Samaritano, proposta em 1998, parada no Congresso Nacional há dez anos", enfatiza Porpino.
 
Com essa lei, já vigente em diversos países, varejistas poderão doar produtos que estão próximos da data de vencimento sem serem responsabilizados por possíveis efeitos causados pelo consumo de alimentos dispensados por seu estabelecimento, o que pode incentivar as doações para os bancos de alimento. "No contexto brasileiro, a base legal necessária e parcerias com organizações não governamentais e varejo poderiam ajudar a enfrentar dois problemas: o elevado desperdício no fim da cadeia e a insegurança alimentar", completa.
 
Do ponto de vista da pesquisa, os avanços parecem estar no caminho certo. Embalagens mais anatômicas modeladas a partir do escaneamento 3D das frutas, boas práticas no transporte, películas biodegradáveis e embalagens nanotecnológicas comestíveis já estão em desenvolvimento nas bancadas dos cientistas brasileiros. Além de aumentar a vida de prateleira dos alimentos, poderão agregar ganhos ambientais e nutricionais.
 
Porpino alerta: uma vez identificado que o desperdício de alimentos é um problema real das famílias de baixa renda, é urgente e necessário educar as pessoas para que façam compras mais inteligentes, armazenem de forma adequada os alimentos e adotem dietas saudáveis. São nada menos do que 4,5 bilhões de consumidores, segundo o Banco Mundial, para os quais esse comportamento impensado causa grande impacto no orçamento familiar. "Felizmente, a maioria dos fatores que levam ao desperdício de alimentos pode ser facilmente sanada por simples mudanças de hábitos na compra de alimentos, preparo e armazenamento. Dessa forma, uma grande parte da população poderia melhorar sua qualidade de vida", conclui otimista. 
 

Juliana Miura
Secretaria de Comunicação da Embrapa - Secom

Mais informações sobre o tema
Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC)
www.embrapa.br/fale-conosco/sac/

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