Cada vez mais entrelaçados, matéria, informação e cérebros são os insumos básicos da indústria contemporânea Formado em Medicina na década de 1970, Fábio Gandour, cientista-chefe do Laboratório de Pesquisa da IBM Brasil, atribui parte da sua trajetória acadêmica e profissional ao modelo experimental de educação já então adotado pela Universidade de Brasília (UnB), na tentativa de resgatar, segundo ele, o conceito original da palavra Universidade – conhecimento universal. Das consequências na sua formação, a mais importante, como ressalta, decorre da abertura dada pela UnB para que os alunos cursassem matérias de outras faculdades. Assim, o estudante pode se matricular em matérias "exóticas" ao seu curso, a exemplo de história em quadrinhos, ou estudar línguas. Além da Medicina, a área na qual ele mais avançou foi a Matemática – cursou até o Cálculo 5. Durante a residência em cirurgia pediátrica, fez uma pequena descoberta de ordem estatística no seu campo de especialização. Para explorar essa descoberta, aproximou-se dos computadores. "E o vírus da informática me pegou, tive uma septicemia informatizada", brinca o bem-humorado Gandour. Depois, dirigiu seu doutorado para Ciências da Computação, concluído na Universidade Stanford, Califórnia, Estados Unidos. Logo, foi contratado pela International Business Machines (IBM) para trabalhar em informática em saúde, até que surgiu a chance de se inserir na divisão de pesquisas da empresa. "A veia de pesquisador sempre esteve meio escondida, achei que deveria aproveitar a oportunidade", conta, orgulhoso de ter sido um dos idealizadores do projeto que resultou na construção do Laboratório de Pesquisas da IBM no Brasil. Sistema Watson - desenvolvido pela IBM, o sistema de Computação Cognitiva destaca-se por sua capacidade de entender linguagem natural, aprender e gerar insights. É capaz de fornecer respostas a perguntas dos usuários. Representa o caminho da computação semântica. Suas possibilidades de uso nos diversos campos do conhecimento, como a Medicina, para a qual foi idealizado, têm sido divulgadas. Em 2011, ficou conhecido por vencer dois campeões de um dos programas de televisão americanos mais importantes, no estilo perguntas e respostas, chamado Jeopardy! Nesta entrevista, Fábio Gandour fala sobre Computação Cognitiva, inaugurada pelo Sistema Watson* desenvolvido pela IBM. Fala ainda sobre pesquisa e sobre o que ocorre na produção de bens e caracteriza a transformação digital do mundo em que vivemos. Como bom estudioso, recorre à História para lembrar o secular sistema binário e contar um pouco da evolução da informática. XXI - Revolução digital e transformação digital são expressões usadas em referência à nossa era, em que o uso da tecnologia vem mudando radicalmente a forma de atuação das organizações e até mesmo nossas vidas. O que as caracteriza? Fábio Gandour - Vou responder com um viés um pouco diferente. Se me perguntassem qual foi o maior erro da civilização, eu remeteria ao século XIV, quando Marco Polo voltou do Oriente trazendo um sistema de numeração diferente, o sistema de numeração binário, que continha apenas dois números − zero e um. A civilização moderna sediada em Veneza vivia um pré-Renascimento, e o grande erro foi o desprezo à novidade trazida pelo explorador. Sábios pré-renascentistas começavam a dimensionar uma série de coisas próprias da civilização e esse dimensionamento tocava, inclusive, na medição da riqueza. Um sistema de medição que tinha nove dígitos, indicava a álgebra de origem árabe, parecia ser muito mais eficiente do que um sistema de medição que tivesse só dois dígitos. Grande equívoco! Hoje, todo o processo de inovação passa pela palavra digital, com origem em um sistema de numeração construído na matemática binária e não na decimal. E a chamada revolução digital é a possibilidade de expressar tudo o que até então era expresso em átomos em bits. Representados por dois dígitos: zero e um. Então, estamos tendo que voltar atrás e configurar o nosso modo de pensar para transformar tudo o que for possível de átomo em bit. É isso que caracteriza a transformação digital. E ela é tão relevante que algumas pessoas preferem tratá-la como uma revolução. XXI - Como essa revolução se reflete nos sistemas produtivos, na produção de bens e serviços? CAD - do inglês Computer Aided Design (Desenho Assistido por Computador, em português), que permite projetos em 3D. É usado na engenharia, na arquitetura, na geologia, na geografia, entre outras áreas do conhecimento. Fábio Gandour - Estamos desmaterializando uma série de mecanismos de produção, substituindo átomos por bits, com vistas à facilidade de acessos, ao aumento do lucro, à produção de mais riquezas. No passado, no caso da manufatura, tendo eu projetado uma peça de engrenagem, por exemplo, poderia começar a construir seu protótipo esculpindo a ideia em um bloco de madeira, com canivete. Quando conseguisse um razoável estágio de perfeição, faria o molde negativo em gesso, poliria o gesso, ajustaria as medidas e as passaria a um torno mecânico, que, por sua vez, esculpiria em metal a peça que nasceu em madeira. Aí, ela finalmente seria usada no meu protótipo. O que fazemos hoje? Concebemos uma peça, desenhamos essa peça em CAD*, que permite uma imagem tridimensional bem definida, com razoável grau de complexidade. Jogamos essa concepção em uma impressora 3D, que a imprime e compõe a peça na matéria que eu quiser, em plástico ou em titânio. No primeiro exemplo, comecei do átomo. No segundo, fiz um desenho que não existe no mundo das coisas reais. É um desenho em CAD. A vantagem competitiva está em produzir instrumentos que sejam capazes de rematerializar em átomos aquilo que foi feito em bits. XXI - No Brasil, estamos sendo capazes de produzir esses instrumentos? Fábio Gandour - Temos empresas que produzem soluções em CAD bem razoáveis, podemos sim projetar em bits. Mas não temos tradição na produção de instrumentos. E o momento agora é o de produzir instrumentos que capturem a essência da criação digital e a rematerialize em átomos na qualidade preferida. XXI - E o impacto nas instituições de pesquisa? O que vem mudando na forma de fazer ciência? Fábio Gandour - Temos, na IBM, um laboratório de pesquisa que se dedica à solução de problemas complexos. Problemas para os quais os modelos tradicionais não conseguem apresentar soluções. Mas usamos ciência e tecnologia para alcançar essa resposta. Porque com ciência e tecnologia podemos nos valer da metodologia científica, uma ferramenta muito robusta para encontrar soluções destinadas a problemas complexos. Trabalhamos com modelagem matemática, simulações, formulações de hipóteses, análise massiva de grandes quantidades de dados, sempre com base na metodologia científica, que, em última análise, gera uma hipótese e tenta comprová-la. Se a hipótese não se comprova, mudamos o método, a coleta de dados, a forma de abordagem. O principal insumo de produção, o principal instrumento, não é um medidor excepcional ou um espectrômetro de massa altamente sofisticado. Os principais instrumentos são neurônios de boa qualidade. Uma empresa de pesquisa como a Embrapa, por exemplo, voltada à agropecuária, também caminha nessa mesma direção, de formular hipóteses e testar hipóteses em bits. A questão é que, por sua natureza, ela tem que materializar o resultado em átomos − em átomos vegetais ou naqueles agrupados em proteínas animais. XXI - E o que está por vir? Fábio Gandour - Há ainda, voltando à desmaterialização, outro conceito relacionado com a transformação digital, uma fase que ainda está por vir. Tem a ver com a pergunta "tudo vai ser bom?" Tudo vai ser a maravilha que se diz a esse respeito? Vai chegar a hora em que será preciso uma pausa para aferição de resultados. Pois sustento fortemente que alguns processos são preferíveis em átomos. Até porque, por enquanto, átomos transmitem emoções, sensações, o que os bits não transmitem. XXI - Vamos ser capazes de interpretar essas sensações, os sentidos, em bits? Fábio Gandour - Se nós vamos ter essa capacidade tecnológica, a resposta é sim. Com certeza absoluta. O que a gente não sabe é se o resultado e os efeitos serão os mesmos. Mas que a tecnologia vai chegar lá, não resta dúvida que vai. É uma questão de tempo. XXI - Quais as tecnologias que estão dando suporte a essa revolução? Fábio Gandour - Uma delas sem dúvida é a Computação Cognitiva, que é a evolução natural do próprio progresso da gestão da informação, configurada na chamada tecnologia da informação, executada com auxílio de equipamentos variados, que recebem o nome genérico de computadores. O que aconteceu com a TI e com os computadores? Lá atrás, a TI coletava dados. Dados organizados de forma ordenada e útil transformavam-se em informação. O ordenamento dos dados e a vinculação a alguns títulos, a alguns clusters de informação, a procedimentos que permitem fazer relações e correlações transformam esses dados em uma fonte de informação. E quanto mais e melhor informado, mais capacidade de decisão tem o usuário de TI. Logo, informação é uma ferramenta de apoio à decisão. Na medida em que o usuário captura essa informação e a usa para decidir, ele gera, a partir do resultado do processo decisório, um conhecimento. O conhecimento, uma vez consolidado e testado, pode ser transmitido. Quando se transmite o conhecimento, se transmite na forma de saber. Muito bem, até então a informática reunia dados, colocava-os de forma ordenada e útil, transformava-os em informação e a disponibilizava para o usuário, que, por sua vez, a transformava em conhecimento. Na era da Computação Cognitiva, que é uma terceira era da computação – na primeira trabalhávamos com algoritmos e na segunda, com programas prontos –, o sistema, assim como o Watson, gera o conhecimento e o coloca à disposição do usuário, apoiando o processo decisório. Além do conhecimento, ele indica sugestões de uso, fornece recomendações e aponta direções válidas. Claro que a decisão de usar ou não aquele conhecimento e como usar ainda dependem do usuário final. Será que a Computação Cognitiva, na sua fase 5 ou 10, vai promover o saber? XXI - Vai? Fábio Gandour - Quem viver, verá! XXI - O Sistema Watson já está sendo aplicado em algum setor no Brasil? Fábio Gandour - Sim, apesar de ainda ser uma novidade, já existem empresas brasileiras que estão usando soluções de Computação Cognitiva, principalmente na área financeira. E recentemente anunciamos o uso de um sistema dedicado à Genômica, a ser aplicado por um laboratório de análises clínicas. XXI - Como a Computação Cognitiva pode contribuir na pesquisa agropecuária? Fábio Gandour - Acredito que há duas vertentes de Computação Cognitiva que podem ser úteis para uma empresa de pesquisa agropecuária como a Embrapa. A primeira está relacionada à transferência de tecnologia, em apoio ao que é um gargalo a ser superado. Estamos falando de conhecimentos gerados em laboratório, às vezes muito sofisticados, que precisam chegar ao sistema produtivo, a usuários. E a Computação Cognitiva, pelo fato de ter uma interface muito peculiar, que é a interface homem – máquina, que permite a interação em uma linguagem muito parecida com a linguagem natural, se presta muito bem a esse processo. Outra vertente está voltada ao produtor, em apoio ao cliente da Embrapa, ao homem do campo, ao agricultor, ao pecuarista. No processo de decisão comercial, no que fazer com a produção, por exemplo. Se um grande produtor já vê normalmente sua produção sendo negociada na Bolsa de Chicago, o pequeno produtor, em especial, pode se beneficiar da Computação Cognitiva na identificação de outros mercados para comercializar sua produção, que é de menor escala. XXI - Como o Watson pode contribuir para os avanços na área de biotecnologia? Por exemplo, auxiliando na descoberta de espécies mais resistentes à seca? Fábio Gandour - Esse é um assunto que nos atrai muito, mas nós não temos conhecimento específico na área de biotecnologia. Assim como não temos conhecimento em muitas outras áreas. Por isso, temos que construir projetos colaborativos, nos quais cada parte contribui com o que sabe de melhor. À medida que essas parcerias progridem, os resultados vão aparecendo. E suspeito que espécies mais resistentes à seca, às pragas e a variações climáticas em breve estarão entre nós, graças à Computação Cognitiva. XXI - O Watson seria capaz de armazenar um enorme volume de informações sobre o ambiente e prever, por exemplo, ocupações de territórios, em função de formas de exploração, e ao mesmo tempo propor soluções para eventuais problemas? Fábio Gandour - O mundo da Computação Cognitiva não tem limites. Pense em alguma área do conhecimento que pode ser descrita, dimensionada e equacionada em um formato capaz de ser "ingerido" pela máquina e a resposta é "sim, pode ser feito!". Claro que quanto maior a complexidade do problema a ser descrito, dimensionado e equacionado, maior será também a complexidade da solução e, portanto, mais tempo vai se levar para construí-la e, sobretudo, testá-la. Mas, sim, é possível! XXI - Como o Brasil está nesse contexto? Como não perder o timing e ser inovador também nessa nova era digital? Fábio Gandour - Tenho esperança que cresça, cada vez mais, o reconhecimento à contribuição da ciência e a tecnologia para o resultado econômico do País. Nos últimos anos esse reconhecimento melhorou muito. Houve um período de incentivo enorme para a criação de laboratórios no Brasil. O nosso laboratório pegou um pouco essa barca. Mas incentivos servem para romper a inércia. Depois, conta o esforço de cada um. Continuamos aqui com um portfólio de pesquisa amplo. E estamos dando atenção especial ao agronegócio. É uma das nossas prioridades. Estive recentemente no Oeste Paranaense, parece que a crise não passou por lá. Por quilômetros, tudo está verde, plantado. Não existe mais o conceito de safrinha, as duas – de inverno e de verão – têm o mesmo tamanho, graças aos avanços da engenharia genética.
Foto: Divulgação
Cada vez mais entrelaçados, matéria, informação e cérebros são os insumos básicos da indústria contemporânea
Formado em Medicina na década de 1970, Fábio Gandour, cientista-chefe do Laboratório de Pesquisa da IBM Brasil, atribui parte da sua trajetória acadêmica e profissional ao modelo experimental de educação já então adotado pela Universidade de Brasília (UnB), na tentativa de resgatar, segundo ele, o conceito original da palavra Universidade – conhecimento universal. Das consequências na sua formação, a mais importante, como ressalta, decorre da abertura dada pela UnB para que os alunos cursassem matérias de outras faculdades. Assim, o estudante pode se matricular em matérias "exóticas" ao seu curso, a exemplo de história em quadrinhos, ou estudar línguas.
Além da Medicina, a área na qual ele mais avançou foi a Matemática – cursou até o Cálculo 5. Durante a residência em cirurgia pediátrica, fez uma pequena descoberta de ordem estatística no seu campo de especialização. Para explorar essa descoberta, aproximou-se dos computadores. "E o vírus da informática me pegou, tive uma septicemia informatizada", brinca o bem-humorado Gandour.
Depois, dirigiu seu doutorado para Ciências da Computação, concluído na Universidade Stanford, Califórnia, Estados Unidos. Logo, foi contratado pela International Business Machines (IBM) para trabalhar em informática em saúde, até que surgiu a chance de se inserir na divisão de pesquisas da empresa. "A veia de pesquisador sempre esteve meio escondida, achei que deveria aproveitar a oportunidade", conta, orgulhoso de ter sido um dos idealizadores do projeto que resultou na construção do Laboratório de Pesquisas da IBM no Brasil.
Sistema Watson - desenvolvido pela IBM, o sistema de Computação Cognitiva destaca-se por sua capacidade de entender linguagem natural, aprender e gerar insights. É capaz de fornecer respostas a perguntas dos usuários. Representa o caminho da computação semântica. Suas possibilidades de uso nos diversos campos do conhecimento, como a Medicina, para a qual foi idealizado, têm sido divulgadas. Em 2011, ficou conhecido por vencer dois campeões de um dos programas de televisão americanos mais importantes, no estilo perguntas e respostas, chamado Jeopardy! |
Nesta entrevista, Fábio Gandour fala sobre Computação Cognitiva, inaugurada pelo Sistema Watson* desenvolvido pela IBM. Fala ainda sobre pesquisa e sobre o que ocorre na produção de bens e caracteriza a transformação digital do mundo em que vivemos. Como bom estudioso, recorre à História para lembrar o secular sistema binário e contar um pouco da evolução da informática.
XXI - Revolução digital e transformação digital são expressões usadas em referência à nossa era, em que o uso da tecnologia vem mudando radicalmente a forma de atuação das organizações e até mesmo nossas vidas. O que as caracteriza?
Fábio Gandour - Vou responder com um viés um pouco diferente. Se me perguntassem qual foi o maior erro da civilização, eu remeteria ao século XIV, quando Marco Polo voltou do Oriente trazendo um sistema de numeração diferente, o sistema de numeração binário, que continha apenas dois números − zero e um. A civilização moderna sediada em Veneza vivia um pré-Renascimento, e o grande erro foi o desprezo à novidade trazida pelo explorador. Sábios pré-renascentistas começavam a dimensionar uma série de coisas próprias da civilização e esse dimensionamento tocava, inclusive, na medição da riqueza. Um sistema de medição que tinha nove dígitos, indicava a álgebra de origem árabe, parecia ser muito mais eficiente do que um sistema de medição que tivesse só dois dígitos. Grande equívoco! Hoje, todo o processo de inovação passa pela palavra digital, com origem em um sistema de numeração construído na matemática binária e não na decimal. E a chamada revolução digital é a possibilidade de expressar tudo o que até então era expresso em átomos em bits. Representados por dois dígitos: zero e um. Então, estamos tendo que voltar atrás e configurar o nosso modo de pensar para transformar tudo o que for possível de átomo em bit. É isso que caracteriza a transformação digital. E ela é tão relevante que algumas pessoas preferem tratá-la como uma revolução.
XXI - Como essa revolução se reflete nos sistemas produtivos, na produção de bens e serviços?
CAD - do inglês Computer Aided Design (Desenho Assistido por Computador, em português), que permite projetos em 3D. É usado na engenharia, na arquitetura, na geologia, na geografia, entre outras áreas do conhecimento. |
Fábio Gandour - Estamos desmaterializando uma série de mecanismos de produção, substituindo átomos por bits, com vistas à facilidade de acessos, ao aumento do lucro, à produção de mais riquezas. No passado, no caso da manufatura, tendo eu projetado uma peça de engrenagem, por exemplo, poderia começar a construir seu protótipo esculpindo a ideia em um bloco de madeira, com canivete. Quando conseguisse um razoável estágio de perfeição, faria o molde negativo em gesso, poliria o gesso, ajustaria as medidas e as passaria a um torno mecânico, que, por sua vez, esculpiria em metal a peça que nasceu em madeira. Aí, ela finalmente seria usada no meu protótipo. O que fazemos hoje? Concebemos uma peça, desenhamos essa peça em CAD*, que permite uma imagem tridimensional bem definida, com razoável grau de complexidade. Jogamos essa concepção em uma impressora 3D, que a imprime e compõe a peça na matéria que eu quiser, em plástico ou em titânio. No primeiro exemplo, comecei do átomo. No segundo, fiz um desenho que não existe no mundo das coisas reais. É um desenho em CAD. A vantagem competitiva está em produzir instrumentos que sejam capazes de rematerializar em átomos aquilo que foi feito em bits.
XXI - No Brasil, estamos sendo capazes de produzir esses instrumentos?
Fábio Gandour - Temos empresas que produzem soluções em CAD bem razoáveis, podemos sim projetar em bits. Mas não temos tradição na produção de instrumentos. E o momento agora é o de produzir instrumentos que capturem a essência da criação digital e a rematerialize em átomos na qualidade preferida.
XXI - E o impacto nas instituições de pesquisa? O que vem mudando na forma de fazer ciência?
Fábio Gandour - Temos, na IBM, um laboratório de pesquisa que se dedica à solução de problemas complexos. Problemas para os quais os modelos tradicionais não conseguem apresentar soluções. Mas usamos ciência e tecnologia para alcançar essa resposta. Porque com ciência e tecnologia podemos nos valer da metodologia científica, uma ferramenta muito robusta para encontrar soluções destinadas a problemas complexos. Trabalhamos com modelagem matemática, simulações, formulações de hipóteses, análise massiva de grandes quantidades de dados, sempre com base na metodologia científica, que, em última análise, gera uma hipótese e tenta comprová-la. Se a hipótese não se comprova, mudamos o método, a coleta de dados, a forma de abordagem. O principal insumo de produção, o principal instrumento, não é um medidor excepcional ou um espectrômetro de massa altamente sofisticado. Os principais instrumentos são neurônios de boa qualidade. Uma empresa de pesquisa como a Embrapa, por exemplo, voltada à agropecuária, também caminha nessa mesma direção, de formular hipóteses e testar hipóteses em bits. A questão é que, por sua natureza, ela tem que materializar o resultado em átomos − em átomos vegetais ou naqueles agrupados em proteínas animais.
XXI - E o que está por vir?
Fábio Gandour - Há ainda, voltando à desmaterialização, outro conceito relacionado com a transformação digital, uma fase que ainda está por vir. Tem a ver com a pergunta "tudo vai ser bom?" Tudo vai ser a maravilha que se diz a esse respeito? Vai chegar a hora em que será preciso uma pausa para aferição de resultados. Pois sustento fortemente que alguns processos são preferíveis em átomos. Até porque, por enquanto, átomos transmitem emoções, sensações, o que os bits não transmitem.
XXI - Vamos ser capazes de interpretar essas sensações, os sentidos, em bits?
Fábio Gandour - Se nós vamos ter essa capacidade tecnológica, a resposta é sim. Com certeza absoluta. O que a gente não sabe é se o resultado e os efeitos serão os mesmos. Mas que a tecnologia vai chegar lá, não resta dúvida que vai. É uma questão de tempo.
XXI - Quais as tecnologias que estão dando suporte a essa revolução?
Fábio Gandour - Uma delas sem dúvida é a Computação Cognitiva, que é a evolução natural do próprio progresso da gestão da informação, configurada na chamada tecnologia da informação, executada com auxílio de equipamentos variados, que recebem o nome genérico de computadores. O que aconteceu com a TI e com os computadores? Lá atrás, a TI coletava dados. Dados organizados de forma ordenada e útil transformavam-se em informação. O ordenamento dos dados e a vinculação a alguns títulos, a alguns clusters de informação, a procedimentos que permitem fazer relações e correlações transformam esses dados em uma fonte de informação. E quanto mais e melhor informado, mais capacidade de decisão tem o usuário de TI. Logo, informação é uma ferramenta de apoio à decisão. Na medida em que o usuário captura essa informação e a usa para decidir, ele gera, a partir do resultado do processo decisório, um conhecimento. O conhecimento, uma vez consolidado e testado, pode ser transmitido. Quando se transmite o conhecimento, se transmite na forma de saber. Muito bem, até então a informática reunia dados, colocava-os de forma ordenada e útil, transformava-os em informação e a disponibilizava para o usuário, que, por sua vez, a transformava em conhecimento. Na era da Computação Cognitiva, que é uma terceira era da computação – na primeira trabalhávamos com algoritmos e na segunda, com programas prontos –, o sistema, assim como o Watson, gera o conhecimento e o coloca à disposição do usuário, apoiando o processo decisório. Além do conhecimento, ele indica sugestões de uso, fornece recomendações e aponta direções válidas. Claro que a decisão de usar ou não aquele conhecimento e como usar ainda dependem do usuário final. Será que a Computação Cognitiva, na sua fase 5 ou 10, vai promover o saber?
XXI - Vai?
Fábio Gandour - Quem viver, verá!
XXI - O Sistema Watson já está sendo aplicado em algum setor no Brasil?
Fábio Gandour - Sim, apesar de ainda ser uma novidade, já existem empresas brasileiras que estão usando soluções de Computação Cognitiva, principalmente na área financeira. E recentemente anunciamos o uso de um sistema dedicado à Genômica, a ser aplicado por um laboratório de análises clínicas.
XXI - Como a Computação Cognitiva pode contribuir na pesquisa agropecuária?
Fábio Gandour - Acredito que há duas vertentes de Computação Cognitiva que podem ser úteis para uma empresa de pesquisa agropecuária como a Embrapa. A primeira está relacionada à transferência de tecnologia, em apoio ao que é um gargalo a ser superado. Estamos falando de conhecimentos gerados em laboratório, às vezes muito sofisticados, que precisam chegar ao sistema produtivo, a usuários. E a Computação Cognitiva, pelo fato de ter uma interface muito peculiar, que é a interface homem – máquina, que permite a interação em uma linguagem muito parecida com a linguagem natural, se presta muito bem a esse processo. Outra vertente está voltada ao produtor, em apoio ao cliente da Embrapa, ao homem do campo, ao agricultor, ao pecuarista. No processo de decisão comercial, no que fazer com a produção, por exemplo. Se um grande produtor já vê normalmente sua produção sendo negociada na Bolsa de Chicago, o pequeno produtor, em especial, pode se beneficiar da Computação Cognitiva na identificação de outros mercados para comercializar sua produção, que é de menor escala.
XXI - Como o Watson pode contribuir para os avanços na área de biotecnologia? Por exemplo, auxiliando na descoberta de espécies mais resistentes à seca?
Fábio Gandour - Esse é um assunto que nos atrai muito, mas nós não temos conhecimento específico na área de biotecnologia. Assim como não temos conhecimento em muitas outras áreas. Por isso, temos que construir projetos colaborativos, nos quais cada parte contribui com o que sabe de melhor. À medida que essas parcerias progridem, os resultados vão aparecendo. E suspeito que espécies mais resistentes à seca, às pragas e a variações climáticas em breve estarão entre nós, graças à Computação Cognitiva.
XXI - O Watson seria capaz de armazenar um enorme volume de informações sobre o ambiente e prever, por exemplo, ocupações de territórios, em função de formas de exploração, e ao mesmo tempo propor soluções para eventuais problemas?
Fábio Gandour - O mundo da Computação Cognitiva não tem limites. Pense em alguma área do conhecimento que pode ser descrita, dimensionada e equacionada em um formato capaz de ser "ingerido" pela máquina e a resposta é "sim, pode ser feito!". Claro que quanto maior a complexidade do problema a ser descrito, dimensionado e equacionado, maior será também a complexidade da solução e, portanto, mais tempo vai se levar para construí-la e, sobretudo, testá-la. Mas, sim, é possível!
XXI - Como o Brasil está nesse contexto? Como não perder o timing e ser inovador também nessa nova era digital?
Fábio Gandour - Tenho esperança que cresça, cada vez mais, o reconhecimento à contribuição da ciência e a tecnologia para o resultado econômico do País. Nos últimos anos esse reconhecimento melhorou muito. Houve um período de incentivo enorme para a criação de laboratórios no Brasil. O nosso laboratório pegou um pouco essa barca. Mas incentivos servem para romper a inércia. Depois, conta o esforço de cada um. Continuamos aqui com um portfólio de pesquisa amplo. E estamos dando atenção especial ao agronegócio. É uma das nossas prioridades. Estive recentemente no Oeste Paranaense, parece que a crise não passou por lá. Por quilômetros, tudo está verde, plantado. Não existe mais o conceito de safrinha, as duas – de inverno e de verão – têm o mesmo tamanho, graças aos avanços da engenharia genética.
Marita Cardillo
Secretaria de Comunicação da Embrapa - Secom
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