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Pesquisa identifica marcadores químicos na torrefação do café

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Photo: Fabio Sian Martins

Fabio Sian Martins -
O café é a segunda maior commodity mundial, sendo o Brasil o maior produtor e exportador com mais de 50 milhões de sacas por ano. Nosso país também é o segundo maior mercado consumidor da bebida de café, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. O avanço das exportações de café torrado brasileiro, contudo, ainda depende de melhorias ligadas a processos de colheita, pós-colheita e principalmente de torrefação do grão. A pesquisa de substâncias químicas características de cada torra de café arábica (Coffea arabica L.) desenvolvida por Jeane Rosa, da Embrapa Agroindústria de Alimentos, no Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Alimentos do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), traz contribuições para o entendimento dessa questão.

As principais substâncias químicas liberadas em quatro tipos de torra dos grãos de café − clara, média, escura e muito escura − foram caracterizadas em seu estudo. O resultado está publicado na revista Food Research International, editada pelo Canadian Institute of Food Science and Technology (CIFST), instituto canadense voltado à pesquisa e à tecnologia em alimentos, e gerou convites à autora para participação em congressos científicos na Inglaterra, China, Malásia, Taiwan, Estados Unidos, Japão e Grécia.

O processo de torra do café ainda não é facilmente reproduzível e tem baixa uniformidade até mesmo em grãos gourmet, apesar de sua importância para a qualidade global da bebida. Atualmente, o maior desafio tecnológico da área é controlar e reproduzir o tempo e a temperatura ideais durante a torrefação dos grãos. Sem avançar nessa técnica, o Brasil exporta basicamente café cru, vendendo a saca do grão por menos da  metade do valor do processado.

Easi: As duas tecnologias juntas formam uma técnica analítica simples e relativamente barata capaz de ionizar as amostras diretamente em sua superfície, sugerir a identidade dos íons formados a partir da informação de relação massa/carga e, consequentemente, ajudar na elucidação da estrutura química das substâncias de interesse.
 
No caso desse estudo, a técnica foi utilizada para determinar o grau de torrefação e até a detecção de erros de torra do café com base em substâncias (íons) características desse processo.

A baixa qualidade dos grãos de café colhidos no campo também interfere no sabor e no aroma do produto. Grãos defeituosos produzem sabores pouco apreciados, já que sofrem um processo de torrefação desigual e induzem uma torra mais forte, para diminuir a presença de off flavors (substâncias que produzem aromas e sabores não desejáveis) e a acidez excessiva, por exemplo. “O brasileiro está acostumado a beber um café de torra forte, muitas vezes proveniente de grãos de menor qualidade; mas há um crescimento de mercado para os cafés gourmet ou especiais, nos quais eu tenho concentrado meus estudos. É importante notar que esse crescimento impulsiona todo o mercado do produto”, diz Jeane Rosa.

Substâncias químicas caracterizadas na pesquisa são identificadas como marcadores químicos. Ou seja, são classes de compostos químicos característicos de uma matéria vegetal e de seu processamento. Nesse caso, do café e do seu grau de torra. A pesquisa sobre marcadores químicos não voláteis da torra de café desenvolvida por Rosa utilizou equipamentos analíticos, como uma fonte de Easi (Easy Ambient Sonic Spray Ionization) acoplada a um espectrômetro de massa.

A espectometria é feita em equipamento que analisa a relação de massa/carga das amostras com uma precisão de pelo menos quatro casas decimais.

Em uma segunda etapa, a pesquisa identificou, com uso da técnica de espectrometria de massas de alta resolução, que as ßN-alcanoil-5-hidroxitriptamidas (Cn5HT), substâncias pouco estudadas na área de alimentos, podem ser utilizadas como marcadores químicos da torra clara do café. Já a presença de lipídeos (gorduras), como diacilgliceróis e triacilgliceróis, pode, dependendo da intensidade, determinar a torra média para escura e muito escura em blends de café arábica. Ou seja, quanto mais intensa a torra, maior a presença e a intensidade dessas classes de lipídeos na superfície do grão.

Para a impressão digital, a amostra é introduzida na fonte de ionização. As moléculas de interesse, que podem ou não estar presentes na amostra, se ionizam. Uma amostra é analisada com interesse em detectar um ou mais componentes alvo. A partir dos respectivos íons formados, o espectrômetro de massa analisa a relação massa/carga destes. Em um equipamento de alta resolução, a precisão dessa informação sobre massa/carga permite inferir sobre a fórmula molecular e a possível estrutura das moléculas de interesse.

“Estabelecemos uma impressão digital (fingerprinting) de cada tipo de torra somente colocando o grão de café inteiro na entrada do equipamento. Com a informação dos íons produzidos, chegamos aos marcadores de torra nos cafés arábicas estudados”, diz Jeane Rosa. A proposta seria, então, a partir desses dados de perfil químico, fixar os parâmetros de tempo e temperatura de torra para blends específicos de café. Além disso, a técnica de alta resolução utilizada de forma complementar mostrou que vários íons, encontrados no estudo e desconhecidos na literatura, eram na verdade adutos metálicos (moléculas que ao serem ionizadas se ligam a metais como sódio e potássio, por exemplo). “Trata-se de divulgação de conhecimento importante na área de análise de alimentos e na química do café, uma vez que essas substâncias sob forma de adutos metálicos não eram conhecidas”, aponta Rosa.

Outras classes de substâncias, a exemplo da manose, um açúcar que compõe alguns polissacarídeos do café, mostraram-se bons marcadores de torra, pois se degradam ao longo do processo. As avaliações foram feitas por meio da cromatografia líquida de alta eficiência, técnica de separação de componentes químicos de uma amostra para quantificação e/ou qualificação de substâncias de interesse. A constatação cria a perspectiva de verificação do comportamento dessas substâncias em outros cafés em termos de blends, variedades e origens.

Em resumo, a pesquisa estabelece um maior refinamento no processo de torrefação, fundamental para a produção de cafés de maior valor agregado. E, consequentemente, a possibilidade de um incremento na qualidade do café brasileiro processado.

 

PROPRIEDADES FUNCIONAIS DO CAFÉ

O famoso cafezinho atrai a todos pelo sabor, aroma e também pelos efeitos funcionais decorrentes de substâncias estimulantes e bioativas. A torrefação é o processo que permite que os compostos responsáveis pelo aroma e sabor se desenvolvam e se expressem na bebida final. Diferentes processos físico-químicos ocorrem durante a torra do café, resultando na liberação de mais de 800 tipos de moléculas aromáticas e provocando a mudança de cor do grão, de verde para dourado até chegar ao marrom-escuro. “Cientistas do mundo inteiro querem entender o que acontece durante a torra do café. É um processo muito complexo, em que ainda há muito para ser investigado”, reforça Otniel Silva, pesquisador da Embrapa Agroindústria de Alimentos e co-orientador da pesquisa sobre os marcadores químicos.

Silva dedica-se a identificar o ponto da torra de café mais saudável, a fim de garantir um equilíbrio entre o sabor apreciado pelo consumidor e a manutenção dos aspectos funcionais benéficos à saúde. Em conjunto com o grupo de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Compostos Bioativos, Nutrição e Saúde, liderado pelo professor Anderson Junger Teodoro, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Silva iniciou alguns estudos para identificar as melhores condições de torra do café para a extração de compostos funcionais, voltados ao tratamento de células cancerígenas. Os estudos clínicos in vivo (células de câncer de próstata e/ou mama) começam em 2017.

O pesquisador também busca formas de reduzir contaminantes e substâncias não nutricionais presentes nos grãos de café, como micotoxinas, substâncias químicas tóxicas produzidas por fungos, e, principalmente, a acrilamida, substância potencialmente cancerígena, formada naturalmente em processos de aquecimento.

Junta-se a ele nesse esforço a pesquisadora Leda Gottschalk, do Laboratório de Bioprocessos da Embrapa Agroindústria de Alimentos. Sua pesquisa buscou analisar em escala laboratorial o uso da enzima asparaginase. Essa enzima, geralmente produzida por leveduras, é aplicada nas indústrias farmacêutica e de alimentos, justamente para minimizar a formação de acrilamida. No caso, para diminuir sua formação durante o processamento dos grãos de cafés arábica e robusta.

“É consenso científico que a principal via de formação de acrilamida em alimentos é a reação de Maillard, iniciada pela reação do aminoácido asparagina e carboidratos em processos de aquecimento. Portanto, a asparagina, considerada um dos precursores-chave no mecanismo de formação da acrilamida, pode ser removida pela ação da enzima asparaginase. Os resultados iniciais desse tratamento enzimático foram bastante promissores”, conta Leda. A vantagem do uso de enzimas nesse processo é a preservação das propriedades sensoriais do café, como aroma e sabor, tão apreciadas pelos consumidores.

Por outro lado, a torra do café também produz substâncias bioativas como a niancina (vitamina B3) e as melanoidinas, que atuam no metabolismo energético celular, na prevenção de doenças específicas e na reparação do DNA. Dessa forma, acredita-se que as substâncias benéficas à saúde presentes no café, mesmo após a torra, podem contrabalançar a possível formação de substâncias tóxicas e/ou cancerígenas.

Balancear possíveis efeitos desagradáveis do café também integra os esforços da tecnologia de alimentos pelo mundo, e hoje há uma demanda para cafés do tipo stomach-friendly, que sofrem tratamento térmico para diminuir a acidez e para retirar as ßN-alcanoil-5-hidroxitriptamidas, que podem causar irritação no estômago. Hoje, também, os reconhecidos efeitos benéficos da cafeína estimulam até mesmo a criação de cafés com liberação controlada dessas substâncias por meio de microencapsulamento. Alimentos processados como farinha de café, bebidas à base de café cereja, picolés de café, café concentrado vendido em embalagem do tipo squeeze são algumas das tecnologias que provam que o café é uma matriz alimentar tão complexa, que não pode ficar restrito à xicara.

Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou oficialmente o café da lista de possíveis cancerígenos, dependendo da temperatura de ingestão da bebida. Seus efeitos benéficos para a saúde humana e suas propriedades anti-inflamatórias, antioxidantes, anticancerígenas, de proteção cardiovascular e diabetes do tipo 2, hoje, são amplamente conhecidos. Além disso, o ácido clorogênico e a trigonelina, encontrados principalmente em grãos de café verde, comprovadamente diminuem a absorção de glicose e possuem grande potencial para o controle do diabetes. No entanto, ainda há outras substâncias bioativas encontradas no grão que podem revelar um potencial ainda maior e levar o café finalmente ao status de bebida funcional.

Jeane Rosa conta também que novas pesquisas indicam a ação das ßN-alcanoil-5-hidroxitriptamidas encontradas no café na redução dos sintomas do mal de Parkinson. “A partir dessa constatação, é possível que essas sejam as substâncias mais negligenciadas nos estudos da composição química do café até o momento”, afirma. Será então que estas moléculas, que possuem um núcleo de serotonina, têm algum efeito antidepressivo? Estudos já provaram que, após a ingestão de café, os níveis de serotonina aumentam no cérebro. Será que a elevação da serotonina se deve somente à ação da cafeína? Será que a cafeína não é a única substância capaz de produzir uma sensação de bem-estar, afinal? Há muito ainda a ser investigado sobre o café. •

CAFÉ ARÁBICA E ROBUSTA

Os principais tipos de café cultivados no Brasil são das espécies Coffea arabica (arábica) e Coffea canephora (robusta). O café arábica é originário da Etiópia, sendo cultivado em regiões de maior altitude. No Brasil, é plantado principalmente nas regiões da Bahia, Minas Gerais, Paraná e São Paulo. Possui aroma e doçura intensos com muitas variações de acidez, corpo e sabor. Os cafés especiais e gourmet são 100% arábica e possuem, em média, 50% menos cafeína que o robusta.

O café robusta (ou Conilon) é muito difundido na África, Ásia, Indonésia e Brasil, em altitudes próximas ao nível do mar. No Brasil, é cultivado nas regiões do Espírito Santo e Rondônia. É utilizado para dar mais sabor às variedades de bebidas.

A bebida café é produzida por meio das duas espécies de café, que possuem sabores distintos. A harmonização desses grãos é o que chamamos de blends.

 

Navegue: Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC)

Embrapa Agroindústria de Alimentos

Embrapa Café

 

 

 

Aline Bastos
Embrapa Agroindústria de Alimentos

Marita Cardillo
Secretaria de Comunicação (Secom)

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