Sistema Cultivance: a ciência fazendo história
Sistema Cultivance: a ciência fazendo história
Fruto de parceria entre a Embrapa e a Basf, o Sistema de Produção Cultivance, lançado em 2015, combina a utilização de soja transgênica de alto potencial produtivo com o uso de um herbicida de amplo espectro de ação para o manejo de plantas daninhas de folhas largas e estreitas. A tecnologia representa um marco para a ciência brasileira − é o primeiro transgênico desenvolvido integralmente no Brasil, numa parceira público-privada. O feijão 5.1 da Embrapa é a primeira planta transgênica produzida inteiramente por uma empresa pública brasileira que deverá chegar, em breve, ao mercado.
"É a primeira vez que uma planta de soja geneticamente modificada, completamente desenvolvida no Brasil, entra no mercado, com aprovação nos principais países importadores", destaca Maurício Lopes, presidente da Embrapa. "Trata-se de uma tecnologia totalmente verde-amarela, desde a concepção à comercialização, além de caracterizar-se como uma importante e viável alternativa às já existentes", ressalta Eduardo Leduc, vice-presidente sênior da Divisão de Proteção de Cultivos para a América Latina da Basf.
Um dos grandes diferenciais do Sistema de Produção Cultivance é a possibilidade de o produtor brasileiro rotacionar herbicidas com diferentes mecanismos de ação para o manejo de plantas daninhas de difícil controle.
O percurso de desenvolvimento dessa tecnologia foi de quase 20 anos, considerando desde a pesquisa em laboratório até seu registro comercial e sua chegada ao campo. "Aproximadamente 35 cientistas estiveram envolvidos no desenvolvimento dessa tecnologia e na geração de dados que subsidiaram seu processo de liberação comercial no Brasil, isso sem considerar as equipes de apoio de laboratórios, casas de vegetação e campo", explica Carlos Arrabal Arias, da Embrapa Soja, líder do programa de melhoramento genético de soja da Embrapa.
Gene e processo protegidos por patentes dão início à parceria
A identificação pela Basf do gene ahas, extraído de plantas de Arabidopsis thaliana, que confere tolerância ao herbicida da classe das imidazolinonas, e o desenvolvimento do processo de introdução desse gene em soja pela Embrapa foram duas importantes conquistas do processo científico, que, em conjunto, permitiriam às equipes das duas instituições a necessária liberdade de utilização para levar um produto ao mercado.
Isso porque a Basf possui a patente do gene ahas (gene aceto-hidroxiácido sintase), e a Embrapa, a patente relacionada (espaço extra) ao processo tecnológico de geração de plantas de soja geneticamente modificadas. Esse processo consiste em utilizar o gene ahas de tolerância a herbicida como marcador no processo de transformação da soja, o que era inédito na década de 1990.
Em 1997, após os necessários acordos legais, a Basf disponibilizou o gene ahas para a equipe da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia liderada pelo pesquisador Elíbio Rech (foto). Com uma rede de pesquisadores operando em várias Unidades da Empresa e a parceria público-privada estabelecida com a Basf, operação inédita no mundo, foi possível desenvolver a soja Cultivance, do laboratório ao produtor. Foram necessários cerca de 20 anos, mas o lançamento do evento Cultivance posiciona o Brasil ao lado dos países desenvolvidos que vêm colocando produtos dessa natureza no mercado.
Na Embrapa Soja, de 2001 a 2005, foram conduzidos vários cruzamentos genéticos de plantas de soja transgênicas com uma cultivar de soja convencional amplamente adaptada no Brasil. A ideia era chegar ao evento elite, ou seja, uma planta de soja que expressasse a tolerância ao herbicida, mas que tivesse apenas uma cópia do gene, fator essencial para o processo de liberação comercial da tecnologia.
"No desenvolvimento e seleção do evento elite, foram usadas técnicas de melhoramento clássico de soja, até que a planta pudesse se tornar uma linhagem doadora do gene", diz Arias. Além disso, o evento elite, objeto de estudo para a liberação comercial da tecnologia, deve apresentar a mesma composição de uma planta de soja não transgênica.
Na safra 2006/2007, a Embrapa Soja começou a avaliar como as plantas se comportavam no meio ambiente. Foram realizados testes para comprovar a segurança da tecnologia para o meio ambiente e para a saúde humana e animal e, paralelamente, trabalhar no desenvolvimento de cultivares comerciais de soja.
Foram realizados ensaios regulatórios que fornecem dados científicos para embasar a regulamentação da tecnologia em nível nacional e, posteriormente, mundial. Os testes são realizados em áreas experimentais para atender às exigências de biossegurança da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e os requisitos de países importadores da soja brasileira como o Japão, a China e a Comunidade Europeia.
No caso da Cultivance, por três safras, foram conduzidos experimentos em sete locais do Brasil para avaliar se as plantas transgênicas tinham padrão de comportamento similar às convencionais. Os pesquisadores compararam as características gerais da planta, como rendimento, ciclo de desenvolvimento, resistência ao acamamento, altura de plantas, qualidade de sementes, de óleo, teor de proteína, entre outros.
Além das avaliações realizadas a campo, os produtos geneticamente modificados passam por diversos testes em laboratório para análise de equivalência nutricional dos grãos e de caracterização molecular. Para realizar os ensaios a campo, a Embrapa e a Basf solicitaram anualmente à CTNBio autorização para implantar os experimentos de soja transgênica. Depois de aprovado, o experimento passou por constante fiscalização do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Todos os experimentos passavam também por auditoria interna. As informações obtidas eram registradas com o intuito de certificar o processo e garantir o padrão de qualidade na condução das pesquisas.
De forma paralela aos ensaios regulatórios, foram realizadas atividades para gerar cultivares comerciais, processo que leva de seis a oito anos. Na safra 2008/2009 foram feitos os primeiros ensaios de Valor de Cultivo e Uso (VCU) que geram os dados para o registro das cultivares no Mapa. "É um processo tradicional dentro do melhoramento genético, pelo qual se realiza uma experimentação dos materiais a campo, visando a identificar plantas mais produtivas, resistência a doenças e regiões de adaptação do material, entre outras características", explica Arias.
Em 2009, a CTNBio aprovou formalmente a comercialização da tecnologia Cultivance, no mercado brasileiro. Em seguida, a Basf e a Embrapa buscaram sua aprovação em diversos países compradores da soja brasileira, tais como China e União Europeia, visando à comercialização global do produto.
O processo de submissão de dados de análise de segurança em cada país foi iniciado em 2008 e concluído em 2015 com a obtenção da aprovação na Europa. A Basf gerenciou todos os estudos mundiais de registro da tecnologia, custeou os estudos necessários para o atendimento às exigências globais de regulamentação e forneceu pessoal e expertise ao processo de regulamentação, para atender às necessidades de registro no Brasil e em países com mercado de soja relevante. "A Embrapa custeou a implantação da maioria dos experimentos regulatórios no Brasil, disponibilizando suas áreas experimentais com Certificado de Qualidade em Biossegurança, envolvendo pessoal de campo treinado pela equipe de Stewardship da Embrapa e cumpriu papel fundamental no processo regulatório, por meio de conhecimento técnico das diversas áreas de pesquisa envolvidas na obtenção e análise dos dados", destaca Arias. O trabalho conjunto das empresas parceiras permite que a soja Cultivance, plantada no Brasil, seja importada por 17 países e pela União Europeia.
De acordo com o pesquisador Luiz Carlos Miranda, da Embrapa Produtos e Mercado, para produzir sementes nas condições exigidas pelo Programa Stewardship foram adicionados cuidados extras. "O grande aprendizado foi que, além das precauções inerentes às atividades sementeiras, foram adotados o princípio de embalar as sementes em sacaria dupla e cor exclusiva, etiquetas duplicadas, maiores cuidados com o transporte e o descarte de sementes, com destruição das embalagens utilizadas, monitoramento das áreas mesmo após a colheita, limpeza de máquinas dentro da área de cultivo após o plantio ou colheita e o registro documental, por meio de relatórios e fotografias, de todas as atividades realizadas", explica.
Com o programa de Stewardship, foi possível obter a rastreabilidade total das sementes. Além disso, a Unidade de Beneficiamento de Sementes da Embrapa, em Londrina (PR), se dedicou com exclusividade ao Programa Cultivance até a liberação comercial da tecnologia. "O intuito era evitar qualquer risco de contaminação de outros programas de melhoramento genético ou de escape não intencional de sementes", ressalta Miranda.
Atuação Responsável
Enquanto a aprovação mundial da tecnologia não foi concluída, a Basf e a Embrapa se comprometeram com o Programa de Atuação Responsável da soja Cultivance no Brasil. O Programa visava ao adequado cultivo e manuseio da soja para evitar seu escape no meio ambiente e também sua entrada na cadeia de alimentos antes da aprovação regulatória no Brasil e nos países importadores.
O Programa de Atuação Responsável, também chamado de programa Stewardship, foi baseado em três pilares: 1) Implementação de controle para a contenção da produção e cultivo de soja 2) Treinamento dos usuários e 3) Inspeções de verificação da aderência ao programa. Todas as atividades pré-comerciais foram conduzidas seguindo um conjunto de requerimentos para evitar a liberação da Cultivance não intencional no meio ambiente e a sua mistura com outros materiais de soja.
De acordo com Daniela Contri, gerente de regulamentação e stewardship – biotecnologia da América da Sul da Basf −, algumas medidas constituíam-se na manutenção de um isolamento entre o cultivo da soja geneticamente modificada e qualquer outra soja; o uso de equipamentos exclusivos às atividades com a Cultivance; limpeza criteriosa antes e depois do uso de implementos agrícolas, assim como o monitoramento dos campos de cultivo pós-colheita para a identificação e destruição de plantas voluntárias remanescentes.
Para Contri, o controle rígido de estoque de grãos e sementes, regras de embalagem, identificação, armazenamento e transporte, além da destruição de sobras e resíduos de grãos e sementes e o registro integral de todas as atividades a campo realizadas com a soja Cultivance eram requisitos adicionais necessários para garantir a completa rastreabilidade do material.
Foi implementado um processo de verificação do Programa para garantir o cumprimento dos requisitos estabelecidos. As inspeções internas conduzidas por auditores eram realizadas nas áreas cultivadas em todas as etapas críticas do processo de produção. "Todas as equipes envolvidas – desde os operários de campo até os parceiros da Embrapa no processo de desenvolvimento de cultivares – tiveram que se adaptar ao Programa de Stewardship", relata o pesquisador Carlos Lásaro Pereira de Melo. "Várias mudanças ou adaptações tiveram que ser implementadas ao longo do desenvolvimento da tecnologia, o que exigiu mudanças estruturais, alterações metodológicas e até mudanças comportamentais exigidas pelo novo conceito", diz.
Como uma planta desenvolve resistência
O uso excessivo e frequente de um mesmo herbicida para controlar plantas daninhas na mesma lavoura tem como uma das principais consequências o aparecimento de exemplares resistentes. O Sistema de Produção Cultivance chega ao mercado como opção tecnológica para auxiliar os agricultores no manejo de plantas daninhas resistentes a outras tecnologias e de difícil controle na cultura da soja.
O Brasil tem 34 casos de resistência de plantas daninhas a herbicidas, sendo algumas com resistência ao glifosato: buva (Conyza bonariensis, Conyza canadenses e Conyza sumatrensis), azevém (Lolium multiflorum) e capim-amargoso (Digitaria insularis). "As plantas daninhas competem com a soja por luz, água e nutrientes, o que interfere na produtividade", explica o pesquisador Fernando Adegas, da Embrapa Soja. "Também interferem na eficiência da colheita, no aumento do nível de impurezas e na umidade dos grãos", relata.
Adegas explica que a seleção de plantas daninhas resistentes a herbicidas é resultado do uso continuado do mesmo produto na mesma área, sem a rotação de mecanismos de ação. Ao se usar o mesmo herbicida, por um longo período de tempo, o produto elimina a maioria das plantas daninhas, mas seleciona as que são mais tolerantes e as resistentes a ele. "A médio e longo prazo, as plantas resistentes selecionadas aumentam nas lavouras e começam a causar problemas para seu controle", explica.
Mais de 90% dos 31 milhões de hectares cultivados com soja no Brasil utilizam sementes de plantas geneticamente modificadas para a resistência ao herbicida glifosato. Atualmente, estima-se que a resistência ao glifosato esteja disseminada em aproximadamente 30% da área geográfica de cultivo de soja. "Isso não significa que todas as propriedades dentro dessa área de abrangência têm problema de resistência", revela Adegas. "Mesmo assim é um número alarmante".
O Sistema de Produção Cultivance utiliza um herbicida de outro mecanismo de ação, do grupo das imidazolinonas, registrado com o nome de Soyvance Pré. O herbicida deve ser aplicado logo após a semeadura da soja até o primeiro estágio de desenvolvimento da cultura (estádio V1) na operação denominada de Plante e Aplique.
Por causa de sua ação residual e de sua eficiência, o controle das plantas daninhas é iniciado logo após o plantio, eliminando a matocompetição e permitindo que as cultivares de soja expressem todo o potencial produtivo. Na produção agrícola atual é fundamental incluir estratégias e práticas de manejo que colaborem com a sustentabilidade. As áreas de cultivo precisam ser redimensionadas com visão integrada de sistema de produção.
"Cada vez mais, será preciso investir em opções de manejo que envolvam a diversificação de culturas e a rotação de produtos químicos com diferentes mecanismos de ação", explica o chefe-geral da Embrapa Soja, José Renato Bouças Farias. Nos laboratórios e campos experimentais da Embrapa, pesquisadores, em parceria com outras instituições, vêm identificando medidas que podem ser adotadas para evitar a seleção de populações resistentes e garantir que os agricultores tenham alternativas eficientes e seguras para controlar as pragas.
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