13/06/24 |   Segurança alimentar, nutrição e saúde  Convivência com a Seca

Projeto Dom Helder Câmara beneficia 55 mil agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais do semiárido nordestino

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Com índices de extrema pobreza, o semiárido nordestino é uma das regiões menos desenvolvidas do Brasil. Superar a miséria e fortalecer os sistemas e as políticas públicas alimentares nessa região é o principal desafio do Projeto Dom Helder Câmara, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). Entre os meses de setembro de 2022 e fevereiro de 2024, uma equipe de pesquisadores e analistas da Embrapa Alimentos e Territórios executou diversas atividades dentro do projeto Segurança Alimentar e Nutricional e de geração de renda para agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais do Semiárido brasileiro, conduzido no âmbito da segunda fase do Projeto Dom Hélder Câmara (PDHC II). As ações beneficiaram direta e indiretamente cerca de 55 mil pessoas que vivem nesta região. Os recursos de R$ 2.713.095,00 foram financiados pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida).

Com foco nas populações tradicionais e em situação de vulnerabilidade social, o público beneficiado pelo projeto envolveu agricultores familiares, povos indígenas, quilombolas, merendeiras, nutricionistas e estudantes de 30 municípios de cinco estados nordestinos: Alagoas, Bahia, Pernambuco, Piauí e Sergipe. Pela sua abrangência e resultados alcançados, o PDHC II foi eleito um dos cinco melhores projetos do mundo pelo Fida.

“O projeto integrou toda a equipe e fez com que a gente pudesse oferecer ao Fida uma oportunidade bem ampla de trabalho com inclusão socioprodutiva envolvendo agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais e com várias cadeias importantes para a agricultura familiar”, ressalta o Chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Alimentos e Territórios, Ricardo Elesbão Alves.

Realizado com metodologia participativa, o projeto promoveu uma intensa troca de conhecimentos e experiências sobre a importância do uso e conservação da agrobiodiversidade, e o potencial que as espécies da Caatinga possuem para a alimentação e o desenvolvimento sustentável da região.

Distribuídas por eixos temáticos, as atividades abordaram quatro temáticas principais: Manejo da sociobiodiversidade e da agrobiodiversidade; Produção orgânica e agroecológica; Premiação de iniciativas de valorização de Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) e alimentação escolar; e Valorização do patrimônio ambiental e cultural pela agregação de valor a iniciativas de geração de renda.

O relatório de conclusão apresentado relaciona 86 capacitações técnicas oferecidas, entre cursos, palestras, webinários e oficinas de boas práticas de fabricação e beneficiamento de produtos alimentares artesanais e tradicionais; 10 publicações; 8 vídeos; 7 Unidades de Experimentação Participativa sobre quintais produtivos; 3 mapas temáticos; 2 concursos. Foram realizados ainda intercâmbios de experiências e práticas e o Seminário final “Diálogos sobre Agroecologia, Territórios e Cultura Alimentar”, que reuniu órgãos governamentais e representantes de todos os públicos beneficiados.

As ações foram executadas, em sua maioria, em parceria com outros centros de pesquisa da Embrapa, além de universidades, instituições públicas, empresas privadas e organizações do terceiro setor.

Legado de autonomia - Um legado de autonomia e inclusão socioprodutiva também está entre os frutos colhidos com o projeto. “Trabalhamos centrados no desenvolvimento territorial, logicamente tendo como ator principal a questão dos alimentos brasileiros e as pessoas que estão envolvidas nesse trabalho. Esse tipo de abordagem que fizemos neste projeto em parceria com o Fida permitiu que esses atores locais desenvolvessem autonomia para a gestão dos espaços, das propriedades, ou mesmo de pequenos empreendimentos voltados para a questão alimentar. Esse é o principal legado que queremos deixar, contribuir para a autonomia dessas pessoas nesses territórios”, enfatiza o chefe-geral da Embrapa Alimentos e Territórios, João Flávio Veloso.

Para reforçar o legado de autonomia, uma das ações de comunicação do projeto foi a realização de uma oficina de produção e edição de vídeos voltada para jovens das comunidades onde o projeto atuou.

“Nesta oficina, trabalhamos dois conceitos, o de território e o de identidade, além de técnicas de produção e edição de vídeos. A oficina aconteceu em Piranhas, um município do sertão alagoano e os jovens experimentaram o uso de ferramentas de produção e edição de vídeos. Acreditamos que essa oficina é um instrumento para emponderá-los, para que eles mesmos possam divulgar os territórios, as ações que acontecem, suas manifestações culturais, enfim, que possam ser protagonistas nesse processo de divulgação”, relata a jornalista da Embrapa Alimentos e Territórios, Irene Lôbo.

Os resultados alcançados pelo projeto também estão fortemente alinhados aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial a erradicação da pobreza (ODS 1), fome zero e agricultura sustentável (ODS 2), igualdade de gênero (ODS 5), trabalho decente e crescimento econômico (ODS 6), redução das desigualdades (ODS 10) e consumo e produção sustentáveis (ODS 12).

Manejo da sociobiodiversidade e da agrobiodiversidade - A ação foi focada em comunidades Fundo de Pasto do município de Uauá, Juazeiro, Campo Alegre de Lourdes, Sento Sé, Pilão Arcado e Curaçá, todos na Bahia, e na comunidade quilombola Andorinhas (Sento Sé - BA) e povo indígena Atikum (Petrolina - PE).

“Nosso trabalho foi compreender a relação entre esses dois temas e como a cultura alimentar, que é parte da cultura mais ampla daquele modo de vida específico, consegue articular a conservação da agrobiodiversidade, o uso e manejo da biodiversidade, as festas e rituais, tudo o que está expresso naquele território”, explica a pesquisadora da Embrapa Alimentos e Territórios, Paola Cortez.

Outra parte do trabalho consistiu na construção de um mapeamento agroecológico participativo, utilizando uma metodologia desenvolvida para delimitar os espaços de uso e manejo da agrobiodiversidade, como quintais, roçados, criação animal, com o intuito de facilitar a gestão ambiental e territorial das áreas onde vivem as comunidades.

“Nesse trabalho, conseguimos sistematizar um pouco esse conhecimento tradicional da diversidade tão dispersa da Caatinga que eles conhecem, manejam e utilizam, seja no extrativismo, seja para usos medicinais, mas também quanto à diversidade da agricultura e da criação animal que essas comunidades têm”, complementa o analista da Embrapa Alimentos e Territórios, Fabrício Bianchini.

“A gente pesca, a gente planta, a gente comercializa o nosso excedente e a gente também partilha com outras comunidades, não só o pão, mas também nosso saber, nosso jeito de visitar, essas coisas são nossas”, conta a agricultora Margarida Ladislau, da  Comunidade Quilombola Andorinhas, localizada na borda do lago de Sobradinho (Sento Sé - BA). “Aqui eu nasci, aqui eu me criei, criei toda a minha família, aqui eu estarei”, diz a pajé Priscila Pereira, da aldeia Coelho Atikum Jurema (Petrolina - PE).

De acordo com a pesquisadora Paola Cortez, o mapeamento agroecológico possibilitou uma visão geral das relações da comunidade com determinado território, e a cultura alimentar veio evidenciar um pouco mais os processos históricos ligados à cultura e alimentação.

“Ao contrário do que muitos pensam, essas comunidades têm uma segurança alimentar muito rica, muito forte, e um modo de vida com uma cultura própria, manejo próprio da cultura alimentar”, complementa Fabrício Bianchini.

Produção orgânica e agroecológica - Oficinas sobre técnicas para o aperfeiçoamento da produção e criação de novos produtos agroalimentares como doces, geleias, compotas, bebidas fermentadas e biscoitos à base de frutas e alimentos da região semiárida foram algumas das ações desenvolvidas pelo eixo temático “Produção orgânica e agroecológica”.

As ações resultaram em oportunidades de diversificação das fontes de renda para os agricultores e comunidades beneficiadas e também a geração de novos negócios, como a meliponicultura.

“Esse projeto é benéfico para as famílias, em especial a gente que vive no campo, então, quando você trabalha num projeto desses, pensando no orgânico, que é um projeto que você vai alimentar sua família, os seus animais e o solo”, conta a agricultora e técnica de campo Tânia Maria Vitorino (Igaci - AL).

“Somos agricultores, graças a Deus. Tenho o maior orgulho de ser agricultora. É de onde a gente tira o alimento da gente e ainda dá para vender, quando tem produto, para outras pessoas. É um alimento saudável, produzido sem agrotóxico nem veneno, é um alimento muito bom, é uma riqueza”, complementa a agricultora Raimunda Brito, da Comunidade Serra Bonita (Palmeira dos Índios - AL).

Outra ação ligada a este eixo temático foi a instalação de Unidades de Experimentação Participativa, espaços de inovação social voltada para a experimentação de agricultores e agricultoras em torno da produção de mudas orgânicas e hortaliças.

Foram instaladas também três Unidades de Experimentação sobre Quintais Produtivos agroecológicos, integrando produção vegetal e animal e fortalecendo os cultivos de pomares, hortas medicinais e a produção de bioinsumos.

“Fizemos a instalação de estufas, reforma de galinheiros, instalação de tecnologias sociais, como o biodigestor e algumas capacitações sobre o Sistema Participativo de Garantia - SGP para a produção orgânica de mudas de hortaliças”, relembra o pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios Fernando Curado. Os SPGs podem ser definidos como organismos através dos quais é feita, de forma participativa, a avaliação do grau de aplicação de uma norma ou referência relacionadas à produção orgânica no Brasil.

“Além dessas atividades, fizemos um conjunto de ações com sementes crioulas e sementes tradicionais, como a elaboração de um catálogo da agrobiodiversidade de sementes crioulas e a instalação de um campo de produção de sementes crioulas na região de Palmeira dos Índios (AL)”, conta o pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios, Fernando Curado.

Oficinas de apicultura e meliponicultura foram realizadas tanto para populações tradicionais quanto para povos indígenas. Na aldeia dos Tingui-Botó, localizada em Feira Grande (AL), já está em produção o mel indígena do Apiário Tingui-Botó.

“Dentro do projeto, nós tínhamos essa meta de trabalhar o tema apicultura, produção de mel e outros produtos de abelha Apis mellifera dentro de duas terras indígenas, TI Ilha de São Pedro Caiçara, no município de Porto da Folha, em Sergipe, e a TI Tingui-Botó, no município de Feira Grande, em Alagoas. Trabalhamos a biologia das abelhas, a apicultura como negócio, as técnicas de produção, foram comprados kits de materiais para iniciar a produção com caixas de abelha padrão, equipamentos básicos, EPIs completos, como macacão, máscara, e todo o equipamento necessário para iniciar uma atividade com apicultura, pensando na comercialização também desses produtos, no curto, médio e longo prazo”, conta o pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios, Moacir Haverroth.    

Premiação de iniciativas de valorização de Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) e alimentação escolar -  Doze Sistemas Agrícolas Tradicionais (SAT) do Semiárido brasileiro, que se destacam por suas práticas, tecnologias, conhecimentos e rituais, contribuindo para a segurança alimentar e a conservação da biodiversidade, foram selecionados e reconhecidos pelo Prêmio Dom Helder Câmara, uma das iniciativas do PDHC II.

“O Prêmio Dom Helder Câmara para Sistemas Agrícolas Tradicionais do Semiárido é fruto de uma articulação para reconhecer e premiar o trabalho que é feito por esses agricultores, povos e comunidades tradicionais. Um trabalho de resiliência, de adaptação aos diversos biomas e situações muitas vezes extremas em que vivem”, explica a pesquisadora da Embrapa Alimentos e Territórios, Patrícia Bustamante. 

O trabalho teve como foco os sistemas agrícolas do semiárido brasileiro, valorizando as iniciativas que ofereceram respostas para um cenário de mudanças climáticas. Para ser reconhecido pelo prêmio, o sistema agrícola precisava atender a cinco critérios: segurança alimentar, conhecimento tradicional, conservação da agrobiodiversidade, organização social e manejo da paisagem.

Foi acrescentada uma sexta condição que é conseguir relacionar receitas culinárias ao sistema agrícola tradicional. “Conseguimos, nesse período, depois de muitas visitas, selecionar doze sistemas agrícolas tradicionais do semiárido com a parceria do Ministério do Turismo, Ministério da Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq),  e Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). Essas instituições visitaram os sistemas agrícolas junto conosco, além de convidados especiais que foram a cada um deles e nos deram condição de conhecer muito bem esses sistemas antes de efetivamente premiá-los. Mais do que premiar, mais do que selecionar, o que a gente queria era dar visibilidade para esses sistemas que garantem a alimentação deles próprios e dos brasileiros e levar a eles essa linda notícia do tanto que eles são importantes”, relata Bustamante.

“Porque nós, o povo quilombola, temos a nossa referência do Deus das águas, o Deus da terra, o Deus da mata. Então, a gente cuida para de fato a gente trazer essa identidade própria do quilombo, da vivência, do ser quilombola”, relata Osvaldina Rosalina, agricultora do Quilombo Tapuio (Queimada Nova - PI).

Outra vertente do eixo temático foi a alimentação escolar. Foram promovidas uma série de atividades em escolas de 21 municípios de Alagoas, reunindo professores, estudantes e seus familiares, com o intuito de promover uma alimentação consciente e saudável. Destacam-se, ainda, o concurso para nutricionistas e merendeiras, com coordenação do Sebrae Alagoas, que incentivou o aproveitamento integral dos alimentos, estimulando a criação de receitas com produtos típicos da Caatinga, o uso e a valorização dos produtos agrícolas regionais na merenda escolar.

Valorização do patrimônio ambiental e cultural pela agregação de valor a iniciativas de geração de renda - “Acreditamos que a segurança alimentar e a soberania alimentar passam pela diversidade de modos de vida, de plantas, de ambientes. É essa diversidade que tem mantido as propriedades dos agricultores nesse local e nessa relação entre eles também”, resume o pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios, João Roberto Correia.

As atividades desse eixo incluíram oficinas para a construção de um Plano de Conservação Dinâmica da sociobiodiversidade, ou seja, um planejamento para fazer a conservação dos bens materiais e imateriais dos territórios onde vivem as comunidades atendidas pelo projeto, de maneira dinâmica.

“Fizemos oficina sobre o uso da cartografia, sobre o patrimônio e visitas ao Museu de Arqueologia de Xingó (SE) para entender que, de forma geracional, eles estão aqui há muito mais tempo, há mais de 9 mil anos. Então, ao final, juntamente com eles, selecionamos quatro temas que eles acharam interessante: modo de vida, agrobiodiversidade, luta pela terra e patrimônio cultural. E aí eles fizeram mapas desses temas e ficou claro para eles a riqueza que eles têm. Foi para mim um trabalho grandioso porque conheci profundamente bem mais sobre os modos de vida, sobre o que a Caatinga representa para esse povo e o que esse povo representa para a Caatinga”, relata Correia.

“Como a gente vive no semiárido e a agricultura aqui se desenvolve só no inverno, a gente precisava de formas que gerassem alguma renda para que as mulheres e os jovens da comunidade pudessem ter alguma atividade com os bens naturais, lógico que com a preservação, porque não existe turismo sustentável se não houver a preservação do local. Os principais protagonistas desse projeto são os moradores daqui”, relata a agricultora Ana Paula Ferreira, do Assentamento Nova Esperança (Olho D’Água do Casado - AL).

“E sempre lembrando que a gente não consegue construir nada de pesquisa e desenvolvimento se não levar em conta o saber dos agricultores, o conhecimento local, aquilo que vem sendo transmitido de geração em geração e que vem sendo modificado. A gente até diz que é uma conservação dinâmica, porque é a capacidade que os agricultores têm de enfrentar as situações de adversidade, como as mudanças climáticas, a modernização da agricultura, que, às vezes, vem priorizando muito a monocultura e aqui você vê que é essa diversidade que tem mantido as propriedades dos agricultores nesse local, nessa relação entre eles também”, finaliza o pesquisador João Roberto Correia.

Irene Lôbo - Com informações de Nadir Rodrigues (MTb 11.354/DF)
Embrapa Alimentos e Territórios

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