Oficina de guardiões de sementes reúne mais de 100 participantes
Oficina de guardiões de sementes reúne mais de 100 participantes
Photo: Cláudio Bezerra
A pesquisadora Marília Burle, coordenadora do projeto ConservaIn, destacou que a oficina foi uma oportunidade para dialogar com representantes de comunidades de todo o Brasil
A agricultora Ana Andrea Jantara mora em Palmeiras, no Paraná. Neusa Marcelino, no Rio de Janeiro. Indiarrury Can Krahô, do povo Krahô, vive em Itacajá, no norte do Tocantins. José Luiz das Chagas é assentado da reforma agrária em Paulicéia, São Paulo. A engenheira agrônoma Danusa Lisboa faz parte da quinta geração atuante no quilombo Mesquita, na Cidade Ocidental, em Goiás. Andreia Ferreira também é quilombola em Presidente Kubitschek, Minas Gerais. Descendente da etnia indígena Mura, a assistente social Nazide Bentes é agricultora em Presidente Figueiredo, no Amazonas.
Apesar de viverem realidades tão diversas, todas essas personagens têm algo em comum: são guardiãs e guardiões de sementes, e se reuniram nos dias 11 e 12 de fevereiro, em Brasília (DF), para participar de uma oficina organizada por pesquisadores da Embrapa, com patrocínio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), por meio de um Termo de Execução Descentralizada.
Para participantes e organizadores, a primeira "Oficina sobre Conservação da Agrobiodiversidade por Guardiãs(ões) em Bancos Comunitários de Sementes (BCS): Experiências, Diálogos e Demandas" foi um marco. O evento reuniu 106 pessoas, incluindo 27 guardiões de diferentes estados e 11 técnicos externos à Embrapa, e fez parte do projeto ConservaIn, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia.
Desafios
Entre as muitas histórias contadas nos dois dias de oficina, Indiarrury Can Krahô lembrou que a nação Krahô iniciou o resgate de suas sementes crioulas em 1994, quando um grupo de caciques criou a União das Aldeias Krahô. Na época, em reuniões, refletiram muito sobre soberania alimentar e sobre variedades tradicionais que estavam escassas ou desaparecidas.
Foi ali implementada uma escola (não formal) de agrobiodiversidade, que deu início ao resgate de sementes tradicionais, especialmente de variedades de milhos coloridos, conhecidas como Pôhypej, que haviam desaparecido de seus roçados. As lideranças Krahô buscaram a Embrapa em 1994 para recuperar esse material, e em 1997 realizaram a primeira feira de troca de sementes tradicionais, tornando-se pioneiros nessa prática entre os povos indígenas.
Indiarrury expressou o sonho de seu povo, de criar um banco de sementes no território Krahô em parceria com a Embrapa, e destacou a importância de aprender com as experiências apresentadas na oficina, especialmente sobre técnicas de armazenamento que permitem conservar sementes por três a cinco anos, garantindo sua viabilidade.
“É muito importante preservar as sementes crioulas e proteger o conhecimento tradicional de meu povo, que inclui práticas agrícolas únicas, como o plantio de acordo com as fases lunares”, completou. Indiarrury comentou que os Krahô aprovaram um projeto de compra e doação de sementes crioulas, primeiro nesta modalidade para indígenas no Tocantins. Segundo ele, esse projeto irá estimular a multiplicação local das sementes tradicionais.
Apoio
Ana Andrea Jantara afirmou que “participar de um evento com pessoas de diversas culturas e etnias é muito enriquecedor e fortalece a esperança em um mundo melhor.” Ela destacou a importância de compartilhar conhecimentos e práticas ancestrais, e como isso contribui para o bem comum.
A agricultora comentou que um dos principais desafios que ela enfrenta é a falta de espaço para ampliar sua casa de sementes urbanas, onde tem de 80 a 100 variedades. Ana acredita que o maior acesso das pessoas da cidade a essas sementes crioulas permitirá a produção de alimentos mais saudáveis, e enfatizou a importância do apoio do poder público, com políticas que valorizem e incentivem a conservação desses materiais.
“São necessárias ações concretas do poder público, como a criação de hortas comunitárias em lotes disponibilizados pelas prefeituras, a compra de sementes crioulas de guardiões para distribuição a outros agricultores, e a estruturação de sistemas de coleta de água da chuva”, destacou.
Ela também sugeriu a oferta de assistência técnica para ensinar as comunidades a plantar, cultivar e armazenar sementes, e de materiais como estufas e sombrites para proteger as plantações. “Com essas medidas, é possível erradicar a fome nas cidades, sejam elas grandes, médias ou pequenas.”
Sucessão
José Luiz das Chagas argumentou que, atualmente, o mercado é dominado por sementes estrangeiras, enquanto as sementes crioulas e naturais estão marginalizadas. “Uma conferência nacional permitiria multiplicar essas sementes e transformá-las em alimentos saudáveis para a população brasileira”, disse.
Para o agricultor, a expansão do agronegócio, que tem ocupado áreas cada vez maiores e atraído mão de obra, especialmente jovens, é um dos principais desafios para a agricultura familiar e tradicional.
“Isso dificulta a questão da sucessão na agricultura familiar, já que os agricultores estão envelhecendo. Para garantir a continuidade e ampliação da produção de alimentos saudáveis, é preciso investir nos jovens, incentivando-os a permanecer no campo e a não migrar para outras oportunidades de trabalho”, ressaltou.
Legado e cidadania
Foi o que aconteceu com a assistente social Nazide Bentes. Em entrevista ao Correio Braziliense, ela contou que com o envelhecimento da mãe, era preciso escolher uma sucessora para evitar a escassez de sementes na comunidade. "Meus 12 irmãos migraram para a cidade. Então, eu, que sou bastante parecida com minha mãe, me encarreguei de perpetuar esse legado, que assumo com muita honra e carinho", afirmou.
Na comunidade, conservam-se sementes de frutos nativos, como o guaraná e o cupuaçu, além de mandioca, milho, maxixe, jerimum e diversos tipos de castanhas. A diversidade de sementes permite, segundo Nazide, soberania e autonomia aos agricultores locais, garantindo alimentação e fonte de renda.
"A partir da segurança alimentar, a gente consegue almejar um futuro melhor, porque um corpo desnutrido não consegue pensar em outra coisa a não ser em comida", destacou a agricultora, que é presidente da associação de produtores rurais Grupo Esperança Orgânica (GEO).
Riqueza da terra
Também ao Correio Braziliense, a engenheira agrônoma Danusa Lisboa, 36, disse que o quilombo Mesquita, na Cidade Ocidental, conta com cerca de 3 mil habitantes, existe há 278 anos e se dedica à produção de mandioca, tangerina, feijão, milho, abóbora, doces, hortaliças e, principalmente, melado, "carro-chefe" do local.
No Mesquita, cada família é responsável por guardar suas sementes crioulas, que passam de geração em geração. O processo de conservação é feito em garrafas pet, nas quais as sementes são armazenadas juntamente com cinzas, que evitam a deterioração.
"Normalmente, começamos a plantar em outubro, quando iniciam as chuvas. Em março, colhemos as melhores sementes e as guardamos para o plantio do fim do ano. Além da subsistência, também comercializamos os produtos, para garantir uma fonte de renda", contou Danusa.
Ancestralidade
A quilombola Andreia Ferreira foi outra personagem da reportagem do Correio Braziliense. Ela é apanhadora de flores sempre vivas e pertence à quarta geração de "pai véio", figura importante na história do quilombo Raiz e responsável por garantir o assento do grupo naquele território. Para ela, a conservação das sementes crioulas representa a memória de pessoas importantes na constituição da comunidade.
"Colhemos mais de 300 espécies, entre flores secas, sementes e cipós. Minha avó, por exemplo, tem sementes de nove espécies de couve. Além de compartilharmos nossos produtos, trata-se de uma renda importante para as famílias, mantendo-as naquele território", explicou Andreia.
Ela alertou, no entanto, que o acesso a essa área tem sido ameaçado pelo agronegócio. "Sem território, não teremos soberania nem reconhecimento, quem dirá sementes. Por isso, é essencial pensar na valorização desses agricultores, incentivando a juventude a ocupar esse espaço no futuro e a perpetuar a conservação da biodiversidade", declarou.
Troca de sementes
A guardiã Neusa Marcelino ressaltou a importância de manter as sementes tradicionais da comunidade. “Eu busco em todo lugar que vou e consigo fazer o meu banco de sementes”, contou. Ela disse que troca esses materiais com agricultores parceiros e que atualmente há um banco de sementes em Teresópolis (RJ), onde são guardadas as “sementes de tradição”. “A gente não pode perder isso”, reforçou.
Compromisso com a inovação e a transferência de tecnologia
Ana Euler, diretora de Inovação, Negócios e Transferência de Tecnologia da Embrapa, participou da abertura da oficina representando a presidente Silvia Massruhá. Ela destacou que esta é a primeira gestão da Empresa, em 51 anos, a contar com uma mulher na Presidência e outras duas na Diretoria Executiva.
“Uma das primeiras ações dessa nova gestão foi revisar o nosso Plano Diretor, incorporando novas políticas sociais. Temas como inclusão social, agroecologia, mudanças climáticas e conservação dos recursos naturais foram destacados em nossa agenda estratégica de pesquisa e desenvolvimento para a próxima década”, assinalou.
Para ela, essa nova abordagem reflete o compromisso com a inovação e a transferência de tecnologia, além de promover uma gestão focada em inclusão socioeconômica e digital.
Na opinião de Ana Euler, um dos grandes patrimônios da Empresa é o Banco Genético da Embrapa, considerado um dos maiores do planeta, que fica na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. “Ele representa a diversidade genética do Brasil e do mundo, fruto de 51 anos de colaboração com agricultores”, assinalou.
A diretora lembrou que esse acervo é um patrimônio do povo brasileiro, e todos têm o direito de acessar essas sementes em caso de catástrofes climáticas. “A biodiversidade é essencial, pois 70% a 80% dela está sob a responsabilidade de povos e comunidades tradicionais. Portanto, é crucial estabelecer um pacto entre sociedade e governo para apoiar a conservação nos territórios”, afirmou.
Oportunidade
Também presente na abertura, Selma Beltrão, diretora de Administração da Embrapa, falou da importância da oficina para debater as principais demandas e desafios enfrentados pelas guardiãs(ões), ressaltando o papel fundamental dos participantes na manutenção da tradição alimentar e das sementes crioulas.
“É uma oportunidade rica para promover a integração e a troca de experiências, onde as demandas e gargalos podem ser discutidos. A presença de representantes de outros ministérios e instituições de pesquisa, como a Embrapa, é essencial para fortalecer a segurança alimentar das comunidades locais”, assinalou a diretora, sugerindo que o encontro se torne permanente.
“A expectativa é de que as discussões e aprendizados gerados aqui contribuam para o fortalecimento das práticas de conservação e promoção das sementes crioulas, essenciais para a segurança alimentar das comunidades”, finalizou.
Importância da conservação para garantir alternativas sustentáveis
Na abertura do evento, Marcelo Lopes, chefe-geral da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, considerou histórica esta primeira oficina de guardiãs e guardiões de sementes e destacou a importância da conservação de recursos genéticos para garantir alternativas sustentáveis para o futuro.
“Em 2010, um relatório da FAO afirmou que entre 1900 e 2000, 75% da diversidade genética da agricultura no mundo foi perdida”, ressaltou o chefe-geral, lembrando que a erosão genética é um desafio crescente, especialmente diante das mudanças climáticas.
De acordo com Lopes, a conservação da diversidade genética não deve se restringir a grandes bancos genéticos, mas incluir também as comunidades locais, como agricultores e grupos tradicionais, que desempenham um papel crucial na preservação dessa diversidade. “A participação das comunidades é fundamental para enfrentar esse desafio e garantir a continuidade das práticas de conservação”, comentou.
Nesse sentido, o chefe-geral enfatizou que a Embrapa deve priorizar a conservação in situ, reconhecendo a importância do trabalho realizado por pequenos agricultores. “Essa interação entre a Embrapa e as comunidades é uma via de mão dupla, onde ambos podem aprender e compartilhar conhecimentos valiosos, além de ser essencial para fortalecer as ações de conservação.”
Diálogo contínuo
Camile Sahb, diretora do Departamento de Promoção da Inclusão Produtiva Rural e Acesso à Água, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, frisou a importância do resgate de sementes crioulas para a biodiversidade e a adaptação às mudanças climáticas.
Ela ressaltou na abertura da oficina a relevância do evento como uma oportunidade para discutir o funcionamento das casas de sementes e como elas podem beneficiar os agricultores de todo o país. “É muito importante manter um diálogo contínuo e aprender com as experiências locais, especialmente considerando a complexidade das mudanças climáticas e os desafios enfrentados pelos agricultores.”
A diretora demonstrou preocupação com a diminuição da disponibilidade hídrica e destacou a necessidade de repensar o modelo agrícola atual, que se baseia em grandes plantações e áreas irrigadas, propondo uma volta à agroecologia como alternativa viável.
Demandas e gargalos
A pesquisadora Marília Burle, coordenadora do projeto ConservaIn, destacou que a oficina foi uma oportunidade para dialogar com representantes de comunidades de todo o Brasil, promovendo colaborações, e enfatizou a importância de integrar essas parcerias em uma abordagem programática única dentro da Embrapa.
“O evento também serviu para acompanhar mais de perto a situação dos bancos locais e ouvir as experiências dos guardiões, que possuem um conhecimento profundo sobre a conservação. Essas interações revelaram demandas e gargalos que a Embrapa e outros órgãos públicos podem ajudar a resolver”, disse.
Segundo ela, o evento destacou a diversidade de conhecimentos e práticas locais de conservação de sementes, como o uso de cinza, areia e basalto, além de técnicas de controle de umidade e luminosidade. “O objetivo principal foi ouvir e aprender com os guardiões, valorizando seu conhecimento ancestral e cultural, o que surpreendeu positivamente os participantes, que esperavam palestras técnicas da Embrapa”, comentou.
Foram discutidos diversos eixos temáticos, como organização social, comercialização de sementes tradicionais e políticas públicas. Questões como conflitos de terra, desmatamento, êxodo rural e envelhecimento da população rural foram identificadas como desafios para a conservação da agrobiodiversidade.
“A educação ambiental para jovens e a criação de bancos pedagógicos em escolas rurais foram destacadas como estratégias importantes. Além disso, a necessidade de políticas que apoiem a comercialização de sementes tradicionais e agreguem renda aos guardiões foi enfatizada, com propostas como a criação do Dia Nacional dos Guardiões e a realização de uma conferência nacional sobre o tema”, frisou Marília.
O evento contou com a participação de representantes de vários ministérios e órgãos públicos, como MDS, Ministério da Agricultura (Mapa), Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Fundação Nacional do Índio (Funai) e Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que apresentaram políticas relacionadas ao tema.
Um projeto de lei que está em tramitação no Congresso (PL 6.176/2013) e que visa instituir uma política nacional de incentivo a bancos comunitários de sementes foi destacado como crucial para o fortalecimento das práticas locais. “A Embrapa, ao se conectar com esses movimentos e atores governamentais, reforçou sua imagem institucional e compromisso com a conservação da agrobiodiversidade”, assinalou Marília.
Eduardo Pinho (MtB/GO - 1073)
Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia
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