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Artigo - As mudanças ambientais e a saúde humana: impactos da degradação ambiental sobre surtos de doenças infecciosas
As consequências da degradação ambiental do planeta são muitas e, dentre elas, tem sido levantada a hipótese de que a grande intensidade desse processo pode, num futuro próximo, levar a uma quebra de equilíbrio do sistema que leve à mais frequente ocorrência de pandemias e, até mesmo, elevando severidade de doenças emergentes. Abaixo, será discutido, sinteticamente, como as mudanças ambientais em curso podem afetar a ocorrência de novas pandemias sem, contudo, perder-se de vista que nem toda pandemia tem relação direta com esses processos, devendo a análise ser sempre conduzida com sólida base científica.
Rockstrom et al. (2009), em seu artigo denominado “A safe operating space for humanity”, alerta para o fato de que a rara estabilidade do planeta observada durante a época geológica denominada de Holoceno estava ameaçada pela extrapolação dos limites planetários pelas atividades promovidas pela própria humanidade. Os autores relatam que as alterações danosas ao planeta se tornaram mais frequentes após a Revolução Industrial e sugerem que a essa nova época, na qual as atividades humanas são capazes de alterar o equilíbrio do Holoceno, seja dado o nome de Antropoceno. Eles ainda consideram que três processos do sistema terrestre – mudanças climáticas globais (MCGs), razão de perda de biodiversidade e alteração no ciclo do nitrogênio – já atingiram níveis que superam os limites estabelecidos pelos autores e, portanto, representariam um risco imediato ao equilíbrio do planeta.
Os processos de degradação ambiental humano-induzidos têm causado alterações significativas na baixa e na média atmosfera e uma severa depleção de vários outros sistemas naturais como, por exemplo, a fertilidade dos solos, aquíferos, pesca oceânica e biodiversidade. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), essas mudanças têm o potencial de afetar atividades econômicas, infraestrutura e ecossistemas, bem como de causar riscos à saúde da população humana. As mudanças ambientais antropogênicas também ameaçam a saúde humana por causar escassez de água e alimentos, aumentar os riscos de desastres naturais, provocar o deslocamento de pessoas e aumentar o risco de ocorrência de doenças infecciosas (Lindahl & Grace et al., 2015).
Vários são os impactos negativos das mudanças ambientais, dentre os quais vem sendo aventada há algum tempo a possibilidade de que se tornem mais frequentes a ocorrência de epidemias, bem como suas intensidades. Por exemplo, sabe-se que as condições climáticas podem influenciar a ocorrência e a intensidade de algumas doenças epidêmicas, o que tem levado muitos cientistas a considerar plausível a ocorrência de impactos negativos das MCGs sobre surtos de doenças infecciosas, seja em nível local, regional ou, até mesmo, global. Ainda é possível que as mudanças do clima possam influenciar o surgimento de doenças emergentes, bem como de mutações de agentes patogênicos já conhecidos, para as quais o ser humano não está imunologicamente adaptado, levando a elevados índices de infecção e letalidade.
O conhecimento humano sobre os processos de degradação ambiental vem crescendo ao longo dos anos e, por isso, tem crescido a visão da comunidade científica sobre a influência das questões ambientais na promoção da saúde pública. Nesse sentido, a saúde sustentada da população é dependente, dentre outros fatores, da capacidade de suporte à vida promovida pelos serviços da biosfera e, portanto, de fatores como os suprimentos de alimento e água, redução da ocorrência de doenças infecciosas e da segurança física e do conforto conferido pela estabilidade climática, sendo o sistema climático mundial fundamental para a manutenção da capacidade de suporte à vida.
A história das sociedades humanas mostra que várias delas foram afetadas por grandes mudanças climáticas naturais. É o caso dos antigos egípcios, mesopotâmios, maias e populações europeias que foram todas afetadas por grandes ciclos climáticos. Desastres naturais e surtos de doenças são exemplos de respostas a extremos climáticos regionais como o El Niño e o Ciclo de Oscilação do Sul (OMS, 2003a). Antes mesmo de entenderem o papel dos agentes infecciosos os humanos já sabiam que as condições climáticas afetavam doenças epidêmicas como exemplificado pelos aristocratas romanos que subiam as colinas a cada verão para evitar a malária (OMS, 2003b).
As mudanças ambientais observadas atualmente, entretanto, tem como característica principal a influência das atividades humanas como causa. Essa influência tende a acelerar a ocorrência e intensificar processos de degradação ambiental. A degradação ambiental provocada, por sua vez, seria capaz de promover alterações no equilíbrio que levariam ao surgimento mais acelerado de surtos epidemiológicos que poderiam se tornar, a depender da escala atingida, em eventos pandêmicos. Dada à dimensão global de atingimento de seus impactos negativos, as mudanças climáticas globais mais uma vez se destacariam como um dos principais processos de degradação ambiental capaz de estimular a ocorrência de novas pandemias. Não obstante, a aceleração de processos como a perda da biodiversidade, o consumo de carne de animais silvestres, seja ele devido à existência de hábitos culturais ou à necessidade imposta por condições econômicas como a baixa renda de populações, e a urbanização não planejada, o avanço não-planejado dos sistemas agropecuários sobre áreas naturais, por exemplo, também podem contribuir para que um maior contato entre os seres humanos e vetores de doenças infecciosas ocorra, o que aumentaria as chances de transmissão dos agentes patogênicos para a população.
Vetores, patógenos e hospedeiros são capazes de sobreviver e se reproduzir dentro de uma variedade de condições ideais, sendo a temperatura e a precipitação os mais importantes fatores, enquanto outros como a elevação do nível do mar, vento e duração da luz do dia também apresentam alguma influência (OMS, 2003b). Dentro desse contexto, a OMS (2003a) estima que as mudanças climáticas globais têm parcela importante de responsabilidade sobre a ocorrência de surtos mundiais de diarreia e malária em países em desenvolvimento. Um exemplo citado pela OMS (2003b) de como alterações climáticas podem refletir sobre a ocorrência de surtos de doenças infecciosas mostra que, em anos de ocorrência do fenômeno El Niño, o risco de ocorrência de epidemia de malária pode crescer em até cinco vezes. Também poderia se tornar importante a influência das MCGs, por causar alterações na amplitude geográfica (latitude e altitude) e sazonalidade, na ocorrência de doenças infecciosas específicas cujos surtos estão muito ligados a esses fatores climáticos, como malária, dengue, febre amarela, zika e chikungunya. Também é possível que a ocorrência de doenças causadas por alimentos, como salmonelose, cuja incidência aumenta em meses quentes, possam ser afetadas pelas mudanças climáticas globais.
Shope (1991) discute ser possível que doenças como a dengue e a febre amarela tornem-se frequentes em regiões onde hoje não o são, como aquelas localizadas no hemisfério norte, a exemplo dos continentes europeu e norte-americano, em cenários de MCGs. Entre os fatores que poderiam causar essas mudanças poderiam estar possíveis metamorfoses mais rápidas e também tempos de incubação extrínseca mais rápidos dos vírus, favorecidas pelo aumento da temperatura e/ou alterações nos regimes hídricos regionais. Zell et al. (2008) argumentam que as projeções climáticas em cenários de MCGs podem levar à expansão dos habitats de insetos tropicais, o que resultaria em aumento da transmissão de patógenos a humanos. Esses autores também relatam que dados epidemiológicos indicam que a sazonalidade de muitas doenças pode ser futuramente influenciada por eventos climatológicos simples, fenômenos climáticos interanuais e fatores antropogênicos. Ainda apontam alterações na circulação oceano-atmosfera, levando a mudanças nas condições demográficas, sociais e econômicas como importantes fatores do alcance das doenças virais no futuro. Esses fatores devem ser influenciados pelas mudanças ambientais, sendo bem documentada sua ligação com, por exemplo, as MCGs.
Outra possível forma de transmissão de doenças infecciosas ligada não apenas às mudanças climáticas globais, mas às mudanças ambientais como um todo, é aquela ligada à veiculação hídrica. As principais rotas de contaminação por doenças de veiculação hídrica estão ligadas ao contato do ser humano com água para consumo, recreação e/ou preparo de alimentos, contaminada. O contato com água contaminada pode ser intensificado por ações humanas, tais quais a disposição inadequada de esgotos domésticos (OMS, 2003b). Também é possível que eventos climáticos extremos possam aumentar o risco de ocorrência de enchentes e enxurradas, que serviriam como meio de transporte e disseminação de doenças infecciosas, como, por exemplo, a leptospirose e a cólera.
A OMS (2003b) também aponta que outras doenças infecciosas como esquitossomose, helmintíase, cegueira do rio, febre hemorrágica venezuelana, cólera, dengue, leishimaniose cutânea, oropouche, leishimaniose visceral, doença de lyme e síndrome pulmonar do hantavírus podem estar ligadas a mudanças ambientais como barramentos de corpos d’água e formação de canais, intensificação de sistemas agrícolas, urbanização não planejada, deflorestação e aberturas de novas habitações, reflorestamentos, aquecimento dos oceanos e elevação dos índices de precipitação.
Existe em curso uma grande discussão sobre a existência de relação entre epidemias ou pandemias recentes, como o HIV, SARS, MERS, H1N1, ebola e, mais recentemente, o novo coronavírus (SARS-COV-2), com as mudanças ambientais em curso. A resposta definitiva, porém, é complexa e ainda carece da condução de novas pesquisas. Entretanto, várias evidências apontam para a possibilidade de existência dessas relações. Em geral, alguns fatores têm o potencial de disparar a emergência/reemergência de várias doenças infecciosas, incluindo o crescimento populacional, os processos migratórios, a urbanização, o comércio internacional, a pobreza e a fome, as guerras, a perda de biodiversidade, o desmatamento e as mudanças no uso da terra (Zell et al., 2008). Todos esses fatores têm relação de causa e/ou dependência com as mudanças ambientais e podem, uma vez afetados, hipoteticamente levar à ocorrência de surtos de doenças infecciosas.
Estudos conduzidos até o momento apontam para o contato com animais portadores de vírus como a mais provável causa dos surtos iniciais de doenças emergentes recentemente observados, como aquelas mencionadas no parágrafo anterior. Também existem registros históricos de graves epidemias ocasionadas a partir do contato de humanos e animais, como, por exemplo, a peste negra, que dizimou boa parte da população da Europa - algumas estimativas mencionam 1/3 da população desse continente no século XIV. A peste negra é transmitida por uma espécie de bactéria existente em pulgas que acometem ratos e, acredita-se, teve origem no continente Asiático, sendo levada para a Europa através do comércio entre os continentes. O contato com hospedeiros animais pode ainda levar a novos eventos que coloquem em risco a saúde dos seres humanos num futuro próximo. Muita atenção tem sido dada, por exemplo, ao H5N1, um subtipo de vírus Influenza que apresenta elevado potencial patogênico que acomete principalmente aves, inclusive aquelas domesticadas e utilizadas para a alimentação humana. Recentemente foi identificada a dispersão desse vírus, por meio de aves migratórias, da China para diversas regiões do planeta como o Oriente Médio, África e Europa (Zell et al., 2008), causando preocupação na comunidade científica.
Não há dúvidas de que a degradação ambiental pode impactar negativamente em muitos dos fatores mencionados anteriormente e que são gatilhos para a ocorrência de pandemias. Processos como a urbanização não planejada, o aumento da pobreza, o desmatamento, hábitos alimentares culturais, o crescimento populacional desenfreado e o consumismo exacerbado, entre outros, leva a um cenário onde o contato do ser humano com a fauna silvestre pode se tornar mais frequente e, consequentemente, expor mais intensamente as pessoas a vetores de patógenos. O fluxo de passageiros e mercadorias em um mundo globalizado pode ainda disseminar mais rapidamente doenças que, no passado, poderia ficar restrita a poucas localidades. Já mudanças globais, como aquelas ligadas ao clima, têm potencial de mudar rotas migratórias e, até mesmo, as condições climáticas mínimas para a disseminação de doenças por meio do favorecimento de seus vetores, bem como da capacidade de mutação e multiplicação de agentes patogênicos.
É preciso que seja tomado cuidado, porém, ao se atribuir às mudanças ambientais toda e qualquer ocorrência de surtos de doenças às mudanças ambientais. Embora ainda não descartada a ligação das MCGs com a pandemia do novo coronavírus, por exemplo, num primeiro momento houve uma tentativa de ligação imediata da pandemia aos processos ligados a esse fenômeno. Esse fato não está comprovado cientificamente e, se o for, provavelmente ocorrerá vários anos após a ocorrência da pandemia. Alguns trabalhos prévios têm inclusive mostrado que a intensidade dos surtos de Covid-19 independe das condições climáticas, reduzindo, portanto, a chance de uma ligação direta do espalhamento e da gravidade da doença com as MCGs. Esse fato, porém, não descarta a ligação da origem da pandemia com as mudanças ambientais, uma vez que as MCGs são apenas uma das muitas mudanças em curso. Mesmo a relação com as MCGs não está completamente descartada, uma vez que as alterações climáticas podem, hipoteticamente, como mencionado anteriormente, ter influenciado mutações do coronavírus que, por ventura, possam ter ocasionado formas mais eficientes de contágio de seres humanos.
Conclui-se, portanto, que as mudanças ambientais já estiveram e provavelmente estarão ligadas à ocorrência de pandemias no futuro. Entretanto, é preciso ser prudente ao atribuir à essas mudanças toda e qualquer ocorrência de novas pandemias, sendo tal atribuição possível somente à luz da ciência. O desenvolvimento sustentável é, sem dúvida, uma importante forma de promover a melhoria das condições de vida da população, conciliando o crescimento econômico com a melhoria das condições sociais e a preservação ambiental, reduzindo os riscos de ocorrência e intensidade de novas doenças.
Referências bibliográficas
Organização Mundial da Saúde (OMS). Climate Change and human health: na old story writ large. In: Climate change and human health – risks and responses. Summary. 2003a. Disponível em: https://www.who.int/globalchange/summary/en/. Acesso em 28/05/2020.
Organização Mundial da Saúde (OMS). Climate change and infectious diseases. In: Climat change and human health – risks and responses. Summary. 2003b. Disponível em: https://www.who.int/globalchange/summary/en/. Acesso em 28/05/2020.
Lindahl, J. F.; Grace, D. The consequences of human actions on risks for infectious diseases: a review. Infection Ecology & Epidemiology, 5, 1, p. 1-11, 2015.
Shope, R. Global climate change and infectious diseases. Environmental Health Perspectives, 96, p. 171-174, 1991.
Zell, R.; Krumbholz, A.; Wutzler, P. Impact of global warming on viral diseases: what is the evidence? Current Opinion in Biotechnology, 19, p. 652-660, 2008.
Carlos Eduardo Pacheco Lima
Pesquisador da Embrapa Hortaliças
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