Agronegócio do Leite
Defesa Comercial
Autores
Vicente Nogueira Netto
Aloísio Teixeira Gomes
Historicamente, a internalização de produtos lácteos a preços artificialmente baixos esteve na raiz dos principais problemas da atividade leiteira nacional. Mais especificamente, as importações desleais provocaram, direta ou indiretamente, os seguintes danos: redução do preço pago ao produtor; balizamento artificial dos preços no mercado doméstico; instabilidade dos preços praticados aos produtores e consumidores, dificultando o planejamento da atividade; inibição do aumento da oferta interna voltada ao atendimento do mercado formal e institucional; desestímulo ao desenvolvimento, especialização e crescimento auto-sustentado da pecuária leiteira; elevação do nível de desemprego na pecuária de leite; competição desigual, gerando falências e sérias dificuldades para as cooperativas e empresas de laticínios; efeitos negativos sobre a balança comercial brasileira.
Para minimizar os prejuízos causados pelas importações, o Governo implementou, por solicitação do Comitê Nacional da Pecuária Leiteira (CNPL), várias medidas administrativas com o objetivo de impedir a entrada das commodities lácteas carregadas de subsídios e dumping nos países de origem. As principais ações adotadas foram:
- Proibição da elaboração e da comercialização de leite longa vida a partir do leite em pó – essa medida teve o objetivo de desestimular as importações predatórias de leite em pó que, uma vez reidratado, competia deslealmente com o leite fluido nacional;
- Adoção da Anuência Prévia do Ministério da Agricultura nas importações de produtos lácteos – essa medida teve a intenção de possibilitar maior fiscalização dos derivados lácteos internalizados no País, não permitindo que chegassem ao varejo produtos de má qualidade ou impróprios para o consumo humano;
- Elevação da alíquota do imposto de importação de leite em pó e queijos para 35% (no caso de produtos de fora do Mercosul) – essa medida buscou dificultar as importações de produtos notoriamente subsidiados nos países de origem. (hoje o imposto é de 27%);
- Redução do prazo de financiamento das importações para o máximo de 30 dias – essa medida procurou inibir importações desnecessárias ao abastecimento doméstico, mas que entravam no País estimuladas por prazos de financiamento superiores a um ano, especialmente aquelas provenientes da União Européia.
Todas as medidas acima relacionadas se revelaram, com o tempo, insuficientes para frear as compras externas de produtos lácteos, pois a prática de dumping – exportar a preço inferior àquele praticado no mercado doméstico – constituía-se em insuperável estímulo para o importador brasileiro, tanto no caso da indústria como dos sem fábrica, que apenas fracionavam a mercadoria para ofertá-la no mercado doméstico.
Diante desse quadro, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Brasileira das Cooperativas de Laticínios (CBCL) e a Leite Brasil buscaram na defesa comercial uma ação mais eficaz e duradoura para combater as importações desleais. Depois de um trabalho técnico intenso, durante todo o ano de 1998, a CNA protocolou petição solicitando investigação de existência de dumping nas exportações de leite para o Brasil, no Departamento de Defesa Comercial (DECOM) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
Dois anos depois, quando o processo de investigação já continha mais de 22 mil páginas, a Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) publicou a Resolução nº1/2001, que finalizou a investigação, concluindo que houve dumping nas importações de leite originárias da Argentina, Uruguai, Nova Zelândia e União Européia, entre julho de 1998 e junho de 1999. Com o apoio das Federações da Agricultura, da Leite Brasil, da Confederação Brasileira de Cooperativas de Laticínios, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Gado de Leite e da Secretaria de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, finalmente comprovou-se a prática desleal de comércio, com danos aos produtores brasileiros, como a queda nos preços e no faturamento, além de margens de lucro negativas. Nesse período, as importações também aumentaram a sua participação no mercado doméstico.
A fixação de direito antidumping definitivo de 16,9%, 14,8% e 3,9% sobre as importações de leite em pó provenientes, respectivamente, do Uruguai, União Européia (à exceção da empresa Arla Foods) e Nova Zelândia, consiste na mais importante medida de defesa comercial adotada até hoje em relação ao setor agropecuário brasileiro. Além disso, a CAMEX homologou Compromisso de Preços para as importações de leite em pó originárias da Argentina e da empresa dinamarquesa Arla Foods. Em seguida, foi também homologado o termo de compromisso de preços com as empresas do Uruguai.
Essas medidas mudaram os rumos da cadeia produtiva da pecuária de leite brasileira, ao neutralizar os danos causados pelas importações de leite em pó a preços artificialmente reduzidos pela prática de dumping. Com a redução da influência negativa das distorções do mercado mundial de leite, rompeu-se a mais forte amarra ao desenvolvimento e à modernização do setor. Agora, as entidades representativas do setor leiteiro podem concentrar seus esforços para resolver os problemas domésticos, especialmente aqueles decorrentes de eventuais excessos de oferta.
A conquista mais recente do setor leiteiro, no campo da defesa comercial, foi a inclusão do soro de leite na Lista de Exceções à Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul, com imposto de 27%, equiparando-o ao leite em pó e aos queijos. Essa medida, adotada em setembro de 2002, tende a desestimular as importações de soro subsidiado na origem. As aquisições de soro de terceiros mercados estavam crescendo exponencialmente desde o início do Plano Real.
Para convencer o Executivo da importância dessa medida, a CNA, a CBCL e a Leite Brasil enfatizaram as seguintes justificativas:
- O soro em pó é um subproduto obtido por meio da secagem do soro fluido proveniente da fabricação de queijos. Os maiores produtores mundiais de queijos e, conseqüentemente, de soro são os Estados Unidos da América e os países que compõem a União Européia. Como nesses países a produção e a exportação de queijos recebem altos subsídios, pode-se concluir que o subproduto soro também se beneficia indiretamente da ajuda governamental, o que confere ao produto competitividade artificial no mercado internacional.
- Quando começou a viger a União Alfandegária no âmbito do Mercosul, em janeiro de 1995, os principais itens tarifários de leite em pó e queijos foram colocados na Lista de Exceções à Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul, inicialmente com tarifas de 35%, com o objetivo de defender a produção doméstica das importações carregadas de subsídios e/ou dumping. A diferença de tarifas de importação do soro em relação ao leite em pó, desde então, constitui-se em grande estímulo às compras externas de soro, em detrimento da produção doméstica de leite em pó e soro de leite. Como conseqüência, as importações de soro, que em 1994 foram de 5,6 mil toneladas, alcançaram 43 mil toneladas em 2000. Além disso, o desestímulo à produção interna de soro em pó constitui-se em dano potencial ao meio ambiente, uma vez que o soro fluido não-beneficiado tem alto poder de poluição.
- Outro fato que evidencia a substituição do leite nacional pelo soro importado é a sazonalidade das importações. A análise da série histórica das importações mensais de soro, no período de 1995 a 2002, revela incremento de volume na época de entressafra, de abril a setembro, confirmando que o soro importado substitui o leite nacional. Diante desta constatação, pode-se afirmar que a qualquer momento o soro importado pode deslocar a produção nacional, dependendo sobretudo da quantidade de subsídio recebido no país de origem. A exceção à sazonalidade observada foi o mês de janeiro de 2001, quando a internalização desse produto atingiu 5 mil toneladas. Todavia, uma análise mais detalhada dos acontecimentos daquele período mostra coincidência com término da investigação de dumping nas importações de leite em pó, o que certamente motivou antecipação de exportações de soro para o Brasil. Além da sazonalidade, a avaliação da série histórica demonstra que ano após ano as importações estão aumentando em volume.
- O material de divulgação dos países que exportam soro de leite para o Brasil revela-se prova inconteste de que o soro importado, em grande medida, desloca a produção doméstica de leite em pó, além de inibir a fabricação de soro nacional. Em vários textos, o US Dairy Export Council - Brasil enfatiza a alternativa vantajosa de substituir leite em pó por soro.
Além de desestimular a produção doméstica, as importações de soro desviam comércio no Mercosul. Os parceiros do bloco, principalmente Uruguai e Argentina, por não subsidiarem a produção de soro, estão competindo em desigualdade de condições com os Estados Unidos, por exemplo. No período de janeiro a junho de 2002, enquanto os países do Mercosul exportaram 5 mil toneladas de soro de leite para o Brasil, ao preço médio de US$ 740, somente os norte-americanos exportaram 6 mil toneladas, ao preço médio de US$ 515. Sem a concorrência desleal dos Estados Unidos, as importações provenientes do Mercosul poderiam ser maiores e, provavelmente, a preços superiores aos praticados atualmente. Nesse caso, as indústrias brasileiras também estariam dispostas a produzir soro. Vale lembrar que o soro em pó pode ser produzido nas mesmas unidades industriais que fabricam leite em pó.