Uva para Processamento
Deterioração microbiológica do vinho e do suco de uva
Autor
Gildo Almeida da Silva - Embrapa Uva e Vinho
Os micro-organismos são imprescindíveis no processo de elaboração de vinhos. No entanto, esses mesmos agentes biológicos podem promover alterações indesejáveis. Vinhos podem apresentar defeitos que se originam durante o processo de elaboração ou durante o seu armazenamento. Tais alterações são devidas à abundância de fontes de carbono disponíveis naquele meio líquido. Embora o vinho bem elaborado não seja o ambiente mais propício para a atividade microbiológica, ele contém componentes que podem favorecê-la, como o próprio etanol, os açúcares residuais, os polissacarídeos, e diversos outros compostos orgânicos. Todo e qualquer processo biológico que resulte numa mudança de comportamento fermentativo da Saccharomyces cerevisiae, altera o percurso normal de elaboração de um vinho de qualidade. Os agentes que podem comprometer a qualidade do vinho podem ser fungos filamentosos, leveduras e bactérias.
Os fungos filamentosos podem ser instalar na rolha e afetar o sistema de vedação da garrafa e, de forma indireta, alterar a qualidade do vinho. Além disso, fungos filamentosos podem influir diretamente, formando micotoxinas que, com o passar do tempo, entram em contato com o vinho, contaminando-o.
Entre as leveduras mais comumente encontradas no vinho, atenção especial deve ser dada para espécies de Hansenula e Pichia porque podem formar toxinas que têm ação direta sobre a fermentação do vinho por inviabilizar a atividade da Saccharomyces cerevisiae ou alterar seu comportamento. Há relatos da ação direta de determinadas toxinas sobre a saúde humana. Leveduras podem elevar a acidez volátil do vinho, tornando-o desagradável. Podem ainda causar turbidez e proporcionar a formação de gases em vinhos engarrafados.
Os mais temidos gêneros de leveduras são Brettanomyces e Dekkera, por uma razão muito simples. Formam substâncias de odores estranhos denominados etil-fenóis. Estes dois gêneros não competem com Saccharomyces cerevisiae e esperam que a fermentação alcoólica se complete, a fermentação maloláctica se realize. Só no vinho pronto é que vão atuar. Vinhos com teor de etanol mais elevado, de maceração mais longa e ricos em extrato seco são os que apresentam maior potencial de deterioração por estes microrganismos. Eles entram em ação quando a atividade e a competitividade microbiológica tornam-se baixas. Ficam à espera do que sobra do processo fermentativo. Mesmo utilizando quantidades pequenas, como, por exemplo, 300 mg/L de açúcar residual, estas leveduras são capazes de formar quantidades perceptíveis de etil-fenóis. O aroma exalado pelo vinho contaminado com Dekkera ou Brettanomyces tem as seguintes descrições: estábulo, plástico queimado, suor de cavalo, couro molhado, gravo da índia, band-aid, fenol e remédio. Não é de se admirar o medo que se tem de uma contaminação do vinho por estes micro-organismos.
Alterações indesejáveis no vinho
A flor é uma alteração do vinho caracterizada pela formação de véu, turvação, depósito e leve nebulosidade. Causada por leveduras que se originam de uvas ou habitam o ambiente da cantina ou o entorno desta. Durante a vinificação, as condições lhes ficam desfavoráveis e suas atividades são praticamente nulas. Isso não significa dizer que não exista viabilidade celular e que elas estão completamente desativadas. Foram encontradas células viáveis de levedura em vinhos com 25 anos de armazenamento. Se as condições ambientais lhes forem favoráveis, estas alterações serão percebidas e a qualidade do vinho se torna comprometida. Também pode ocorrer a transformação do etanol do vinho em água e gás carbônico. Este tipo de deterioração provoca destruição de componentes importantes do vinho e formam outros compostos indesejáveis. As condições que favorecem a flor são descuido na higiene, uso de cubas velhas, presença de células viáveis, vinhos com baixa graduação alcoólica, alta pressão parcial de oxigênio do vinho, a presença significativa de substâncias nitrogenadas e volume morto elevado.
Entre as bactérias podemos destacar as acéticas e lácticas como sendo as que mais problemas podem causar ao vinho.
As bactérias acéticas são as que transformam o etanol em ácido acético. Logo, além de diminuir a graduação alcoólica, elevam a acidez volátil do vinho. Espécies de Acetobacter se responsabilizam pela deterioração denominada pique acético, ou seja, avinagramento do vinho. Espécies de Gluconobacter são formadores de corpos cetônicos. Estes são encontrados em todos os vinhos mas são abundantes naqueles que foram elaborados com uvas com podridão. Concentrações elevadas de corpos cetônicos aumentam os riscos de contaminação porque a concentração do preservativo químico (SO2) diminui.
As bactérias lácticas, que durante o processo de elaboração de vinhos desempenhavam um papel importante para a qualidade do mesmo, passam a ser temidas se suas atividade persistirem. Foi visto acima que a atividade destes micro-organismos deve ser estimulada apenas após a fermentação alcoólica, sob pena de o vinho apresentar acidez volátil mais elevada. Se os ácidos orgânicos do vinho forem utilizados por estas bactérias, o vinho se torna mais ácido pelo aumento da acidez acética. A utilização de açúcares por estas bactérias leva ao aumento na acidez fixa e volátil.
A deterioração denominada fermentação láctica atenuada de açúcares é provocada por bactérias lácticas e se caracteriza por um ligeiro aumento da acidez fixa, da acidez volátil e torna o vinho ainda mais seco. Dependendo do açúcar metabolizado, pode haver um aumento da acidez volátil em detrimento da formação de ácido láctico. Quando a glicose ou açúcares semelhantes à glicose é utilizada, o ácido láctico é o principal componente formado.
A deterioração manítica, também conhecida como pique láctico, pode ser praticada por todas as bactérias lácticas. Ocorre em processos fermentativos defeituosos, como parada de fermentação, elevação excessiva da temperatura e em vinhos elaborados com mosto prensa. Neste tipo de deterioração, os vinhos se tornam acre-doce, com gosto de ácido acético e viscosos, se apresentam com teor de extrato aumentado, com nebulosidade, com depósito e pouca formação de gás carbônico.
A volta é uma deterioração do vinho provocada por bactérias lácticas que degradam o ácido tartárico. Como produto final, ácido acético e o gás carbônico são sempre produzidos e, dependendo da espécie de bactéria que degrada o ácido tartárico, há formação de ácido láctico ou de ácido succínico como produto final. As bactérias que representam os dois tipos de atividade são Lactobacillus plantarum (forma ácido láctico) e Lactobacillus brevis (forma ácido succínico). Se por um lado, a capacidade de fermentar o ácido tartárico depende da linhagem presente no vinho, por outro lado, um vinho contendo linhagens capazes de fermentar o ácido tartárico pode não apresentar volta. O pH do vinho possui grande influência sobre esta deterioração. Vinhos com acidez acima de 3,5, sem SO2 com histórico de parada de fermentação na sua elaboração, sem uso de leveduras selecionadas, elaborados em temperaturas elevadas e com procedimentos de trasfegas inadequadas são os que mais têm propensão á volta. Vinhos com volta apresentam-se turvos, com leve nebulosidade, gaseificado, com perda da vivacidade e com aroma e sabor desagradável "gosto de rato".
Fermentação do glicerol, também chamado de amargor é uma deterioração que se caracteriza pelo uso do glicerol por linhagens de bactérias lácticas, formado durante a fermentação alcoólica por leveduras. Pela importância do glicerol para a qualidade do vinho, sua redução seria por si só um prejuízo relevante. Um vinho com amargor apresenta acidez aumentada, odores butírico e pútrido e gosto amargo.
Se o vinho, com elevado teor de etanol e baixa concentração de açúcares residuais é um produto passível de deterioração por micro-organismos, o que dizer do suco de uva que possui concentração de etanol nula um elevado teor de açúcares fermentecíveis. Micro-organismos que geralmente não se encontram no vinho, são encontrados no suco com maior frequência. Entre estes estão Byssochlamys fulva, Penicillium e Zygosaccharomyces bailii. Os dois primeiros são fungos filamentosos cuja presença em sucos de uva se reveste de grande importância devido à formação de produtos tóxicos do metabolismo denominados micotoxina. Algumas destas toxinas, se formadas, passarão para o suco e depois para o consumidor do produto. Muitas dessas micotoxinas são carcinogênicas.
Em sucos de uva concentrado, há leveduras que se especializaram em resistir a altas concentrações de açúcar. Zygosaccharomyces bailii é um exemplo destes micro-organismos. Fungos como Aureobasidium pullulans podem se apresentar como tolerantes a elevadas concentrações de açúcares e são encontrados nestes ambientes. Tanto a levedura quanto o fungo filamentoso, se presentes no suco, alteram sua qualidade, consumindo compostos naturais característicos e formando outros de seu metabolismo.