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30/01/18 |   Agricultura familiar

Com ajuda da ciência, primeiras vinícolas gaúchas de pequeno porte são legalizadas

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Foto: Viviane Zanella

Viviane Zanella -

A partir da próxima safra, um grupo-piloto de 11 pequenos vinicultores da Serra Gaúcha sairá da ilegalidade e poderá vender e divulgar seus produtos. A conquista é fruto de um trabalho realizado desde 2010 por oito instituições, com a articulação da Embrapa Uva e Vinho (RS), Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) e Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater/RS-Ascar). Além de viabilizar uma lei feita sob medida para produtores da região, a Lei do Vinho Colonial, o grupo estruturou um protocolo de adequação que foi decisivo para legalizar a produção. Boas práticas, tais como uso de piso impermeável, paredes laváveis, controle de pragas (portas que impeçam a entrada de roedores e insetos, por exemplo), rastreabilidade e procedimentos para higienização, foram detalhadas na Instrução Normativa 05/2000 com a finalidade de auxiliar vinicultores a adaptar sua produção. Todo o conteúdo foi elaborado e proposto por cientistas e técnicos da área.

Conhecimento tradicional preservado

Os pequenos produtores são, na maioria, descendentes de imigrantes italianos que trouxeram na bagagem a fórmula para produzir o próprio vinho, considerado um item básico na sua alimentação. Com o aumento do enoturismo, a procura dos turistas para conhecer, degustar e levar para casa um pouco do vinho denominado colonial ou artesanal podia deixar o pequeno produtor à margem da lei, pois a necessidade de abertura de empresa para formalizar a atividade vinícola representava uma barreira.

Thompsson Didoné é técnico do escritório municipal da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater/RS-Ascar), de Bento Gonçalves, e relata que o “saber elaborar vinho” foi uma herança repassada de geração para geração, em especial na Serra Gaúcha, que detém hoje 85% da produção nacional de vinho e derivados, segundo dados do Ibravin. Na região, muitos pequenos produtores tornaram-se grandes empresários do mundo do vinho, mas a grande maioria continua sendo de pequeno porte.  “Resgatar o vinho colonial é uma espécie de resgate cultural dos nossos imigrantes. É também uma forma de valorização e legalização para que esse saber-fazer tradicional se mantenha forte. É a concretização de um sonho”, pontua ele, que há 15 anos atua na extensão rural e foi um dos grandes incentivadores da ação conjunta.

Produtores capacitados

Didoné conta que o processo para legalizar o grupo-piloto dos 11 pequenos produtores demandou esforços para viabilizar essa regularização em três eixos: tributário, sanitário e ambiental. “A legislação é direcionada aos pequenos produtores de agricultura familiar, que elaboram até 20 mil litros de vinho por ano e possuem 100% de uvas próprias. Eles precisam seguir normas específicas para garantir a qualidade do produto e adequadas à sua realidade”, conta Alexandre Hoffmann, articulador do grupo de trabalho e pesquisador da Embrapa Uva e Vinho. Mesmo tendo a lei aprovada, o grupo precisou continuar o trabalho e orientar e capacitar pequenos produtores, desde o repasse de tecnologias para a elaboração da bebida até o apoio para adequação das pequenas cantinas atendendo as exigências legais.

Segundo Hoffmann, o grupo colaborou tecnicamente com o Congresso Nacional para a criação da Lei do Vinho Artesanal/Colonial (nº 12.959/2014), que dá visibilidade e segurança ao produto elaborado por agricultor ou empreendimento agrícola familiar. A lei estabelece as orientações que o produtor deve adotar e se baseia, essencialmente, na Lei do Vinho (Lei nº 7.678/1988) e em um conjunto de instruções normativas para a elaboração e comercialização do vinho. “Em outras palavras, a legislação prevê que o produtor atenda aos padrões de identidade e qualidade do vinho, com responsabilidade técnica e com volume limitado de produção, especificamente para os produtores que se enquadram no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf)”, destaca. “Com a adequação, os produtores terão segurança jurídica e os consumidores, maior confiança na qualidade do vinho que adquirem”, resume o especialista da Embrapa.

Enoturismo fortalece resgate das tradições

Conforme prevê o Programa, no eixo tributário, foram feitos ajustes para que produtores que elaboram até 20 mil litros de vinho por ano, com uvas provenientes exclusivamente na sua propriedade, possam utilizar o bloco do produtor rural para a comercialização, que deverá ser feita na propriedade, em feiras de produtores ou em cooperativas e associações às quais esteja ligado. Na questão ambiental, a própria equipe técnica da Emater desenvolveu uma planta modelo para tratamento de efluentes. A adoção desta planta já é pré-aprovada para licenciamento pela Secretaria do Meio Ambiente do RS.

Já na questão sanitária, independentemente de ser elaborado por pequenos ou grandes estabelecimentos, por ser um produto para o consumo humano, devem ser seguidas as normas de boas práticas para garantir um alimento seguro. Assim, o grupo de trabalho com coordenação do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) desenvolveu uma lista de requisitos com base na legislação vigente, porém mais detalhada e com explicações específicas para a realidade do vinho colonial. Também foi estruturado um modelo de manual de boas práticas a partir do PAS – Uva para Processamento, porém de forma simplificada.  “Esse trabalho foi desenvolvido e implementado com alguns dos produtores do grupo-piloto para chegar a um formato com boa aplicabilidade.  A lista de requisitos agora estará à disposição em cartilha orientativa, comenta a consultora do Ibravin Janine Basso Lisbôa. Produtores de outros estados poderão usar o material como referência, mas devem se adequar às políticas da agroindústria familiar de cada estado.

Outras normas foram mantidas, como a obrigatoriedade do rótulo, no qual deverá constar a variedade da uva, o nome fantasia do estabelecimento, a data de elaboração e o número da Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Agricultura Familiar (DAP), que foi um ajuste necessário para eliminar a necessidade de formalização de uma empresa.

Visando tornar o processo mais eficiente, as equipes da Superintendência do Ministério da Agricultura do Rio Grande do Sul e da Secretaria do Estado da Agricultura fizeram visitas extraordinárias que serviram para ajustar as questões estruturais dos produtores que manifestaram interesse em se registrar. “Acompanhamos a visita aos 11 produtores que integram o projeto-piloto e atentamos aos itens necessários para a obtenção do registro”, complementa Didoné. A partir disso, a equipe de extensionistas da Emater/RS incluiu no seu calendário uma série de visitas de rotina e acompanhamento dos ajustes nas vinícolas coloniais participantes para orientar os produtores. “O registro é a realização de um sonho, que com certeza vai tirar da informalidade muitos pequenos produtores que poderão legalizar seus empreendimentos”, avalia Didoné.

O grupo de instituições foi mobilizado pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater/RS-Ascar) e, além da Embrapa, reuniu representantes do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), da Prefeitura de Bento Gonçalves (RS) e das secretarias estaduais de Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo e de Agricultura, Pecuária e Irrigação do Rio Grande do Sul.

Primeiras vinícolas legalizadas

Auri Flâmia, da Linha de São Valentim, no interior de Bento Gonçalves, foi um dos primeiros produtores participantes do projeto que conseguiu a legalização da sua vinícola, a Piccola Cantina. Neto de imigrantes italianos, em conjunto com a esposa Diva, cultiva 16 hectares de uvas comuns, como Niágara e ‘BRS Lorena’, e elabora vinhos para consumo próprio e da família e também vende parte da fruta para consumo. Já tinham praticamente toda a estrutura pronta, mas, mesmo assim, precisaram investir cerca de R$ 50 mil para adequar a estrutura conforme determina a norma. “Não me preocupo quando vou ter o dinheiro de volta, mas gosto de produzir vinho e agora que vai ser legalizado fica mais tranquilo. Dá orgulho fazer um bom produto que o pessoal gosta”, comenta Flâmia.

Com a participação da filha mais velha, que é a responsável técnica do estabelecimento,  planejam já na próxima safra fazer os 20 mil litros de vinhos autorizados e comercializar na vinícola ou em feiras de produtores. “Vamos vender em garrafões de cinco litros ou em embalagens pet (plástico) de dois litros, que todos preferem por ser mais práticas e não precisar devolver”, comenta. Sonham que no futuro a propriedade passe a integrar uma rota turística do município, pois os 3,5 km de estrada de chão que separam a BR 470 da sua propriedade proporcionam lindas paisagens, como a vista do Vale da Ferradura.

O produtor Aldo Lazzari, de Garibaldi, não fazia parte do grupo-piloto, mas, em função da urgência devido à fiscalização, recebeu um apoio técnico do grupo gestor e obteve também o registro.

Vinho e turismo

Os irmãos Batistelo, Mateus, Maurício e Marcelo, proprietários dos Vinhos Don Bernardo, localizados no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, aderiram ao projeto de legalização desde o princípio, ainda em 2010, junto com outros 82 produtores do município. Segundo contam, a caminhada foi longa, mas cheia de aprendizados. “A Emater nos incentivou muito e mostrou que íamos ter uma renda a mais ao fazer o vinho e comercializar. E, o melhor, fazer o que a gente gosta”, comenta Mateus.

Eles já tinham o pavilhão, mas foram necessários muitos ajustes que somaram cerca de R$ 50 mil. Com uma produção anual de cinco mil litros de vinho, eles esperam recuperar o investimento em dois anos. “Na frente da antiga casa do nosso bisavô, que fica na frente da vinícola, vamos construir um varejo e também um espaço para os turistas poderem se sentar, beber e aproveitar a vista”, conta Mateus, que é o responsável pela comercialização dos vinhos.

Os irmãos produzem vinhos para a família desde 1995 e contam que participar deste projeto do resgate e legalização já qualificou a produção. Desde 2013, fizeram a conversão dos parreirais para o sistema de espaldeira, que garante uvas de qualidade para a elaboração do vinho. “Toda a parte técnica, do vinhedo à enologia, foi aprendido com a Embrapa e com a Emater. Eles que nos incentivaram a mudar para espaldeira que ia melhorar o vinho”, comenta Marcelo, responsável pelo gerenciamento dos parreirais. Atualmente, eles cultivam as variedades Tempranillo, Marselan, Malbec, Shiraz e Merlot para a elaboração dos seus vinhos.

Mesmo estando fora de uma rota turística conhecida, Vitório e Ivone Somensi, da Cantina Porão do Vale, elaboram vinho há sete anos e, desde que integram o projeto, já conseguem perceber a evolução na sua produção, nos últimos cinco anos. Eles investiram 70 mil reais nos ajustes necessários e estão confiantes que irão recuperar o investimento em até três anos com a venda dos produtos. “Uma agência de turismo nos procurou para organizar visitas. Estão só esperando legalizarmos a estrutura e finalizar o nosso varejo para começarem a trazer os turistas”, contam animados. Além de vinhos de uvas viníferas, como a Merlot, eles também produzem o tradicional vinho de Isabel e Niágara. As bebidas serão comercializadas em garrafas e garrafões de cinco litros.

Próximos passos

Segundo dados da área de Transferência de Tecnologia da Embrapa Uva e Vinho, cerca de três mil pessoas já foram treinadas, muitos dos quais hoje são grandes produtores. Além de coordenar esta ação de legalização, na percepção do pesquisador Alexandre Hoffmann, ainda há muito trabalho para as próximas etapas da pesquisa, como desenvolver e repassar tecnologias para qualificar o vinho colonial.

O Rio Grande do Sul concentra a maior parte dos produtores de vinho colonial, mas, segundo projeções, estima-se que cerca de quatro mil famílias produzam e vendam, sem registar, seu vinho no Brasil. “Conhecemos empreendedores também nos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, que, com certeza, também se beneficiarão com os avanços da lei e das tecnologias”, avalia Hoffmann. A expectativa do grupo que coordenou o projeto-piloto é que essa experiência possa guiar e facilitar a legalização desses produtores, como um importante fator de renda, sustentabilidade e manutenção da tradição da elaboração de vinho.

Viviane Zanella (MTb 14.400/RS)
Embrapa Uva e Vinho

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