Programa para incentivo de utilização da soja na alimentação humana

Conteúdo migrado na íntegra em: 08/12/2021

Autores

José Marcos Gontijo Mandarino - In memoriam

Mercedes Concórdia Carrão Panizzi - Embrapa Trigo

 

No início dos anos 80, apesar do aumento na área de cultivo e da produção no Brasil, a soja ainda era vista apenas como uma fonte de óleo comestível e ração animal, e seu gosto característico limitava sua aceitabilidade como alimento humano de uso direto.

Portanto, o programa de Soja para Alimentação da Embrapa Soja foi inovador na proposta de divulgar e ensinar o uso adequado da soja e suas propriedades nutricionais. Esse programa iniciou com o projeto de melhoramento genético para obtenção de cultivares mais adequadas para o  consumo direto e o desenvolvimento de tecnologias para o preparo correto da soja, incluindo-a como alimento em pratos da culinária tradicional brasileira. O programa também utilizou várias estratégias de difusão tais como: cursos de culinária, unidades de degustação, palestras, consultorias, divulgação na mídia, entre outras.

Após 23 anos de programa pode-se observar que houve aumento significativo no consumo direto de alimentos de soja no Brasil, devido à oferta de centenas de produtos alimentícios industrializados, onde a soja não é apenas um ingrediente funcional tecnológico, mas é o ingrediente principal da formulação desses alimentos. Resultados sobre os benefícios da soja para a saúde humana também impulsionaram esse mercado, a partir do final dos anos 90. Entretanto, o trabalho desenvolvido pela Embrapa Soja para promover a soja como alimento, educando a população sobre o seu valor nutricional, foi essencial para divulgá-la, pois se não houvesse esse trabalho, com certeza levaria muito mais tempo para que fosse aceita pela população, mesmo com as informações da mídia sobre soja e seus benefícios para a saúde humana.

Os resultados do programa podem ser medidos por meio do número de tecnologias geradas (cultivares e receitas de produtos à base de soja), de publicações, de pessoas treinadas, etc.  É importante destacar que a Embrapa Soja, hoje é reconhecida nacionalmente pela sociedade como centro de referência para informações sobre soja para alimentação humana.

O trabalho continua em andamento com mesmo entusiasmo dos primeiros anos. Temos recebido a visita de pesquisadores e técnicos de empresas brasileiras de alimentos como: Sadia S.A., Yoki Alimentos S.A., SL Alimentos, da Grano Frozen e de empresas japonesas: Mitsui Brasileira Importação e Exportação. S.A., Mitsui & Co. Ltd. (Japão), Toho Bussan (Japão), Nomura Trading Brazil, Seibu Nousan Kaihatsu e Nisshin Shokai Co. Ltd. nos consultando sobre cultivares especiais para ser direcionadas ao processamento de alimentos de soja. Também recebemos a visita de técnicos da Construtora Noberto Odebrech que além da consulta sobre cultivares também necessita de informações sobre tecnologias de processamento de alimentos e programas de assistência social para Angola na África, comprovando a possível repetibilidade do programa em diferentes regiões do Brasil e do mundo situadas abaixo do paralelo 20 de latitude norte. Junto com a Associação dos Produtores Orgânicos de Londrina - APOL estamos desenvolvendo um projeto de transferência de tecnologia para a produção de farinhas e bolachas de soja a partir de grãos orgânicos, o que promoverá a agregação de valor ao produto, viabilizando agroindústria familiar.

A demanda por soja está crescendo e o projeto de melhoramento deverá concentrar esforços para a obtenção de novas cultivares especiais, que também sejam produtivas e adaptadas às diversas regiões de cultivo no Brasil. A Embrapa Soja continua desenvolvendo produtos inovadores, diferentes daqueles propostos pela indústria, como a “soja verde” e o broto de soja ou “moyashi”, visando a agregação de valor aos produtos agropecuários, que serão uma opção a mais para processadores de alimentos e agricultores familiares.

 

Histórico do programa 1985-2009

Nos anos oitenta, a soja estava em plena expansão de produção no Brasil, que logo se tornaria o segundo produtor mundial. A utilização de soja no país se concentrava na produção de ração animal, o que ainda é o seu principal destino. O consumo de soja na alimentação humana era limitado ao óleo e seus derivados (margarinas, maioneses) e aos concentrados e isolados proteicos, utilizados como ingredientes em outros alimentos processados. Alguns programas municipais processavam “leites” de soja em “vacas mecânicas” que, em geral, originavam produtos de qualidade inferior, com sabor desagradável ao paladar ocidental. É conhecida a reação de desgosto do presidente João Figueiredo, quando experimentou o “leite” de soja de uma “vaca mecânica”, para horror dos promotores do “leite” de soja, na época. O presidente, no entanto, tinha toda a razão, o sabor do “leite” era péssimo, decorrente das tecnologias inadequadas para o seu processamento. O programa da Merenda Escolar recebia Proteína Texturizada de Soja (PTS) que, apesar de ser um produto de excelente qualidade e com inúmeras possibilidades de uso na alimentação humana, não foi divulgado corretamente. Sem o devido treinamento das merendeiras sobre a utilização da PTS, o que se viu foi uma enorme rejeição à soja que, por ser um produto de excelente qualidade nutricional, poderia ter ajudado em programas de combate à desnutrição no Brasil.Frente a esse cenário, em 1985, propusemos desenvolver pesquisas que incrementassem o uso da soja como alimento humano. Iniciamos o projeto de melhoramento genético ”Desenvolvimento de cultivares de soja adaptadas para o consumo humano ‘in natura’ e para a indústria de alimentos”, cujo objetivo era obter cultivares de soja com melhores características para a alimentação humana, o que também incluía melhoria do sabor.

A soja é originária da China, onde é consumida há mais de três mil anos, mas nos países ocidentais se constitui num alimento exótico, que não faz parte do nosso hábito alimentar. Salienta-se que o sabor exótico da soja foi o fator relevante que impediu uma maior aceitabilidade desta leguminosa, daí o objetivo de melhorar o sabor por meio de metodologias tradicionais de melhoramento genético.

Nos anos setenta, técnicas de processamento desenvolvidas pelo “International Soybean Program” - INTSOY, da Universidade de Illinois, USA, mostraram que a soja está longe de ser um alimento com sabor não aceitável, pois o preparo adequado desta leguminosa rende alimentos saborosos além de muito saudáveis. O fator primordial para melhora do sabor de produtos à base de soja é a inativação das enzimas lipoxigenases por meio de tratamento térmico, técnica hoje utilizada por todas as indústrias processadoras de soja.

Em 1986, no início do programa, tivemos a oportunidade de participar do curso “Soybean Processing Short Course”, promovido pelo INTSOY, o que nos impulsionou a propor o estabelecimento do programa “Soja para Utilização Humana” na Embrapa Soja. O objetivo principal deste programa foi a difusão de informações sobre a soja (processos, utilização e valor nutricional), visando o aumento do seu consumo e de seus derivados pela população brasileira. Antes da descoberta da ação das enzimas lipoxigenases, a soja era processada conforme as técnicas orientais, com a maceração dos grãos em água fria, o que propiciava a reação das enzimas lipoxigenases com o seu substrato, os ácidos graxos poli-insaturados. Havia, consequentemente, a formação de compostos que originam o sabor desagradável da soja.

Em 1987, na Embrapa Soja, iniciamos o programa “Soja para Alimentação Humana”, para incentivar o consumo da soja e seus derivados como alimentos, juntamente com o projeto de melhoramento genético para obtenção de cultivares mais adaptadas para o consumo humano. Era necessário o desenvolvimento de um projeto de educação e informação junto à população que tanto rejeitava a soja, pois sabíamos que as cultivares especiais que fossem obtidas pelo projeto de melhoramento, só seriam utilizadas se houvesse uma disposição para consumo de soja. Portanto, era necessário um programa de educação e informação à população, a priori.Para o programa, organizamos cursos práticos de culinária de soja, cujo objetivo era ensinar as técnicas corretas de preparo. Todas as receitas à base de soja desenvolvidas na Embrapa Soja foram baseadas na tecnologia de inativação da enzima lipoxigenase desenvolvida pela Universidade de Illinois, permitindo a obtenção de produtos com melhor sabor. Convém salientar que, naquela época, as técnicas adequadas de preparo da soja para inativação da enzima não eram do conhecimento da população em geral. Os trabalhos de promoção da soja realizados pela Embrapa Soja foram pioneiros e essenciais para a utilização correta da soja pelo público leigo. Estas tecnologias são hoje conhecidas pela população que, constantemente, procura a Embrapa Soja solicitando informações a respeito.

Para atender o programa, criamos uma cozinha experimental na Embrapa Soja, onde foram iniciados o desenvolvimento e teste de inúmeras receitas de pratos salgados e doces da culinária brasileira, nos quais a soja e seus derivados - grãos, farinha, extrato ou “leite” de soja, proteína texturizada ou “carne” de soja, tofu ou “queijo” de soja - eram incluídos como ingredientes. Naquela época, era preciso mostrar que a soja era um ingrediente alimentar que poderia ser incluído em qualquer receita da culinária tradicional brasileira, sem alterar suas características. Foi então publicado no Brasil, pela editora Globo, em 1988, o primeiro livro com 140 receitas à base de soja: “Delícias da Soja”. Este trabalho continua a ser desenvolvido na Embrapa Soja até hoje e centenas de outras receitas foram publicadas na forma livros de receitas, manuais e folderes.

Conforme objetivos do programa de divulgação da soja como alimento humano, também eram realizadas palestras técnicas, visando informar sobre o valor nutricional da soja. Para apresentação do sabor melhorado e da boa qualidade dos novos produtos à base de soja, foram realizadas unidades demonstrativas para degustação de produtos à base de soja. Todas essas ações do programa continuam sendo realizadas em diversos municípios, não só do estado do Paraná, mas também em outros estados da federação, facilitadas pelo caráter institucional da Embrapa Soja como Centro Nacional de Pesquisa de Soja, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
A partir de 1995, o programa de promoção e divulgação da soja, iniciado em 1987, se tornou um programa institucional sob a chancela “Programa Soja na Mesa”, o qual dá continuidade aos trabalhos de educação sobre as técnicas adequadas de preparo, sobre suas qualidades nutricionais e benefícios para a saúde dos brasileiros. O programa “Soja na Mesa” concentrou esforços nas seguintes atividades de transferência de tecnologia: 1) cursos e treinamentos em culinária de soja, onde são abordadas as técnicas adequadas de preparo dos alimentos à base de soja e seus derivados, visando à formação de monitores, que atuarão na transferência destas técnicas em suas regiões; 2) desenvolvimento e teste, na cozinha experimental da Embrapa Soja, de receitas à base de soja e seus derivados, que são transferidos ao público-alvo na forma de livros de receitas; 3) assessoria aos programas das prefeituras municipais que possuem "vacas mecânicas" para produção do "leite" de soja, de modo a garantir a qualidade dos processos e dos produtos produzidos; 4) contato e assessoria técnica com as indústrias processadoras de alimentos à base de soja; 5) divulgação da soja como alternativa alimentar econômica e nutritiva, por meio de Unidades de Degustação, palestras, dias de campo e matérias veiculadas na imprensa nacional (jornais, revistas, rádio e televisão); 6) parcerias com entidades filantrópicas e organizações não governamentais, fornecendo soja em grãos para o consumo de seus assistidos e/ou treinando seus monitores na utilização culinária da soja; 7) apoio a projetos de pesquisa na área da saúde com universidades, bem como outros institutos de pesquisa, onde são estudados e testados os efeitos da soja na saúde humana.

A disponibilidade de produtos à base de soja com qualidade tem aumentado muito nos últimos cinco anos e com um crescimento significativo do mercado brasileiro para vendas de produtos à base de soja. Tecnologias que conferem melhor qualidade aos produtos são responsáveis por este aumento na demanda. Por meio do melhoramento genético, características especiais são incluídas na soja, o que tem permitido maior qualidade e melhor adaptação da soja para diferentes usos. Nos 20 anos de programa avaliamos e lançamos para cultivo comercial as seguintes cultivares com características especiais para alimentação humana, que são destinadas para sistemas de cultivos convencionais e orgânicos.