Agrotóxicos

Conteúdo migrado na íntegra em: 22/12/2021

Autor

Vera Lúcia Scherholz Salgado de Castro - Embrapa Meio Ambiente

 

O uso de agrotóxicos no campo pode resultar na intoxicação dos trabalhadores rurais com diferentes graus de severidade, constituindo-se em um problema de saúde pública. De acordo com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) o Brasil é o maior consumidor de produtos agrotóxicos no mundo, e embora tenha alcançado avanços consideráveis no controle da produção e consumo desses produtos nos últimos tempos, ainda apresenta condições sócio-sanitárias compatíveis àquelas de países em desenvolvimento. A exposição por esses produtos pode ocorrer devido tanto ao seu uso ocupacional quanto a contaminação ambiental.

Foto: Arquivo Embrapa Meio Ambiente 

Figura 1. Descarte de embalagens de agrotóxicos em local impróprio

 

A presença de agrotóxicos estocados na proximidade da moradia, a proximidade de moradia às áreas de trabalho e o manuseio doméstico da lavagem de roupas utilizadas na aplicação também contribuem, entre outros, para a exposição das pessoas a vários agrotóxicos concomitantemente. O estudo de alguns dos mecanismos envolvidos na exposição aos agroquímicos e o conhecimento dos processos através dos quais eles possam afetar os organismos não–alvo são, portanto, essenciais para o desenvolvimento de parâmetros a serem empregados na avaliação dos riscos à saúde pública e na tomada de decisões quanto à segurança de seu uso.

Contudo, a exposição aos agroquímicos, seja através de exposição ambiental ou ocupacional, raramente se limita a uma única substância. Em conseqüência, nem sempre é possível determinar um efeito específico e expressar correlações diretas lineares devido à presença de vários agroquímicos no ambiente. Assim, por exemplo, alguns estudos relacionam a exposição ocupacional aos inseticidas à prevalência de queixas
referentes ao sistema nervoso com sintomas de depressão e ansiedade. Por sua vez, o aumento de efeitos adversos na reprodução, tanto de humanos como de organismos não-alvo, tem causado preocupação devido à contaminação ambiental já que a exposição concomitante a vários compostos, entre eles de agrotóxicos, atuariam afetando os processos endócrinos. Consequentemente, a preocupação quanto ao potencial tóxico de exposições a múltiplas substâncias químicas tem crescido ultimamente.

Foto: Eliana de Souza Lima 

Figura 2 Aplicação de agrotóxicos em videira sem equipamentos de proteção para o aplicador 

 

De forma geral, os efeitos interativos dos compostos químicos podem ser sinérgicos (atuam na mesma direção) ou antagonistas (atuam em direções opostas), causando efeitos tóxicos que podem ocorrer até mesmo quando suas concentrações individuais não estão acima dos valores que ocasionem efeitos danosos ao organismo, mas que em conjunto podem provocar efeitos observáveis. As combinações podem interagir quando uma substância química altera a resposta biológica de outra de forma qualitativa ou quantitativa. Um exemplo são as interações que ocorrem nas enzimas que acarretam aumento ou diminuição da velocidade de biotransformação de uma ou mais substâncias às quais o organismo está exposto concomitantemente. Devido à complexidade, interações e variabilidade dos ecossistemas e seus organismos, é difícil prever os riscos pois uma mesma perturbação pode levar a diferentes respostas dependendo de várias condições ambientais. A toxicidade pode então variar em função de fatores intercorrentes.

Apesar do fenômeno de interações químicas ser conhecido há tempos, são poucos os estudos já realizados que privilegiam a observação dos efeitos decorrentes da exposição a duas ou mais substâncias. A possibilidade de implementação de melhorias nas alternativas de testes de toxicidade favorece a previsão de possíveis interações de substâncias químicas além de adicionar um importante componente aos aspectos de caracterização de perigo do processo de avaliação de risco. A partir de tais estudos pode-se tentar inferir as doses necessárias dos componentes da mistura para que ocorra a interação de efeitos removidos pela mistura, uma vez que a toxicidade da mistura depende da toxicidade dos componentes e de como estes interagem uns com os outros de uma forma dose-dependente.

A seleção de determinados agrotóxicos para estudo deve ser baseada no conhecimento de como esses produtos combinam sinergicamente. Em geral, é importante identificar se os componentes da mistura estão agindo de forma aditiva. Métodos práticos para a avaliação da aditividade dos componentes da mistura têm sido desenvolvidos recentemente, porém, nem sempre estão disponíveis para os órgãos oficiais que avaliam o risco de exposição a essas misturas.

Foto: Arquivo Embrapa Meio Ambiente 

 

Figura 3. Preparo de calda para aplicação

 

Entre os recentes estudos a respeito dos efeitos da exposição a misturas de substâncias químicas, em uma avaliação voltada para os possíveis riscos à saúde, pode-se citar a aplicação de métodos estatísticos como os que avaliam a aditividade de vários componentes da mistura. Esses métodos foram desenvolvidos a fim de acomodar aspectos práticos de misturas binárias e terciárias e refletem a toxicidade associada à proporção relativa do componente da mistura. Eles são úteis para a avaliação de pequenas doses e refletem as toxicidades associadas a proporções relativas dos componentes da mistura.

Contudo, tais modelos não avaliam adequadamente possíveis efeitos não aditivos da interação. Apesar de, a princípio, supor-se que o efeito aditivo dos compostos ocorreria devido à exposição daqueles com mecanismo de ação igual ou semelhante, é preciso levar em consideração em seu estudo o fato de que a metabolização pelo organismo de muitos deles ainda não é completamente conhecida. Além disso, eles também podem causar efeitos diferentes dentro da mesma faixa de dose, interferindo na análise exata da correlação dose-resposta. O aprimoramento desses modelos é então um importante passo para o futuro.

Um grande desafio no estudo dos efeitos potenciais de misturas de agroquímicos é o desenvolvimento de modelos toxicocinéticos em especial em recém-nascidos uma vez que na ocasião do nascimento as vias metabólicas não estão totalmente desenvolvidas. Nesse sentido, pode-se citar a enzima paroxonase que não é produzida nos mesmos níveis de um adulto até os 2 anos de idade, o que torna as crianças dessa faixa etária especialmente vulneráveis aos inseticidas organofosforados. Desta  forma, não é difícil supor que possam ocorrer, por exemplo, prejuízos devido a fatores de risco durante o desenvolvimento do organismo seja por exposição direta seja através da exposição materna a vários produtos simultaneamente. 

A maior sensibilidade a possíveis efeitos tóxicos dos agroquímicos às crianças seria resultante da diferença entre a fisiologia nas diferentes fases da vida em decorrência de alguns fatores como área corporal, período de desenvolvimento, função renal e atividade enzimática, entre outros. Contudo, o efeito observado vai depender dos mecanismos fisiometabólicos e das características dos produtos em estudo. Para esse estudo, podem-se utilizar vários métodos computacionais aliando a toxicocinética aos aspectos fisiológicos do organismo.

A exposição simultânea ou seqüencial a vários produtos com diferentes formulações e em diferentes magnitudes pode, como exposto acima, dificultar a avaliação do risco de danos à saúde. Assim, para uma avaliação criteriosa, a análise dos dados existentes referentes à toxicidade de misturas de produtos químicos de importância na saúde pública deve ser aliada à realização de testes toxicológicos in vivo e in vitro.

Foto: Eliana de Souza Lima 

Figura 4. Descarte de embalagem de agrotóxicos

 

A identificação das misturas de agrotóxicos mais comummente utilizadas e sua triagem quanto a sua importância de ocorrência poderão direcionar as pesquisas para as misturas de produtos com maiores chances de ocasionar danos a saúde ambiental. Alguns pontos importantes para a avaliação das possíveis conseqüências a essa exposição são a freqüência de sua ocorrência, a importância da interação a níveis ambientais relevantes e o tipo de resposta obtida pela exposição. Uma abordagem adequada seria testar os componentes da mistura e suas proporções relativas de forma a refletir aquelas observadas em amostras ambientais.

Caso não seja possível, uma outra abordagem plausível seria a avaliação dos componentes nos níveis máximos ambientalmente permitidos pela legislação. Este quadro confirma a necessidade de abranger estudos relacionados à administração de agrotóxicos em conjunto, pois sua utilização raramente é realizada individualmente nas lavouras. A contínua criação e descoberta de novos procedimentos laboratoriais e delineamentos experimentais é consequentemente essencial para embasar os avanços científicos na área. Portanto, os projetos de pesquisa sobre o tema deverão voltar suas ações preferencialmente para os seguintes tópicos: revisão da informação existente a respeito das interações mais relevantes em termos de saúde pública e ambiental, condução de estudos quantitativos preditivos quanto aos possíveis efeitos daí decorrentes, incorporação de dados cinéticos em modelos matemáticos com maior complexidade das interações estudadas, aplicação da genômica funcional, avaliação dos efeitos em sub-populações mais susceptíveis como as crianças e formação de ampla base de informação toxicológica, entre outros.