Enzimáticos

Conteúdo migrado na íntegra em: 09/12/2021

Autores

Sonia Couri - Consultora autônoma

Mônica Caramez Triches Damaso - Embrapa Agroenergia

 

As enzimas já são utilizadas pelo homem há milênios, contudo o conhecimento científico da sua natureza e propriedades iniciou-se somente em meados do século passado. Neste mesmo período, a Química Orgânica e a Química de Proteínas evoluíram e auxiliaram na posterior criação da Tecnologia Enzimática.

O primeiro registro do uso de enzimas foi em 1783, quando Spallanzani observou a reação de degradação enzimática da carne pelo suco gástrico. Já em 1814, Kirchhoff percebeu que a proteína do glúten da cevada era capaz de liquefazer o amido em açúcar. No entanto, a denominação “enzima”, palavra que em grego significa “em leveduras”, foi utilizada somente em 1878 por Kühne. Nesta época, acreditava-se que enzimas só eram ativas em células vivas, conceito que perdurou até 1897, quando Büchner observou que o extrato obtido por prensagem de células de levedura possuía a propriedade de fermentar sacarose.

Enzimas são catalisadores orgânicos efetivos, responsáveis por milhares de reações bioquímicas coordenadas, envolvidas nos processos biológicos dos sistemas vivos. São macromoléculas pertencentes à classe das proteínas globulares. Algumas são holoproteínas constituídas unicamente de unidades específicas de aminoácidos, enquanto outras são heteroproteínas que possuem uma parte não protéica, o cofator, necessária à atividade catalítica.

Embora todas as enzimas sejam produzidas inicialmente no interior das células, algumas são excretadas através da parede celular e funcionam no ambiente em que está a célula. Com base no local de ação, são considerados dois tipos de enzimas: intracelular ou endoenzima e extracelular ou exoenzima. A principal função das enzimas extracelulares é de executar as alterações de determinados nutrientes, possibilitando a entrada dos mesmos na célula, isto é, a hidrólise de compostos de alto peso molecular. Como as enzimas extracelulares atuam no meio que circunda a célula, fora da membrana celular protetora, elas devem ter boa estabilidade às variações das propriedades físicas e químicas do meio. Além disto, em virtude do grande volume no qual a enzima atua faz-se necessário que a célula as produza em grandes quantidades. Esses atributos tornam as enzimas extracelulares viáveis à utilização industrial em detrimento às intracelulares.

Uma das características notáveis das enzimas quando comparadas com catalisadores químicos é a especificidade pelo substrato e sua capacidade de promover somente uma reação bioquímica com este substrato, garantindo altas taxas de conversão a um determinado produto, sem a formação de subprodutos.

 As vantagens no uso de enzimas em tecnologias ou em processos vivos, possibilitam uma gama de reações e rotinas bioquímicas, com seus benefícios de alta seletividade, condições brandas de reação (pressão, temperatura e pH) e menores problemas ambientais e toxicológicos .

A aplicação industrial de enzimas é determinada pela sua especificidade, atividade, estabilidade de armazenamento e uso, disponibilidade e custos. A atividade de uma enzima é determinada pela sua concentração e do seu substrato, concentração de cofatores, a presença, concentração e tipos de inibidores , potencial iônico, pH, temperatura e tempo de reação. A maneira como cada uma destas variáveis afeta a atividade enzimática é o objeto de estudo da cinética enzimática.

As enzimas são divididas em seis grandes classes, baseadas no tipo de reação que elas catalisam. De acordo com a IUPAC (1979), as seis classes representativas das enzimas industriais são: oxiredutases, transferases, hidrolases, liases, isomerases e ligases. As mais comumente utilizadas na indústria de alimentos podem ser classificadas em quatro grandes grupos, tais como: carboidrolases, que catalisam a hidrólise de polissacarídeos ou oligossacarídeos; proteases, que atuam sobre ligações peptídicas de proteínas liberando aminoácidos e peptídeos; lipases, que estão associadas com o metabolismo das gorduras e com processos de degradação dessas substâncias e as oxidoredutases que são enzimas que oxidam ou reduzem substratos, através da transferência de hidrogênio ou elétrons.

As enzimas são componentes de todos os tipos de células-animal, vegetal e microbiana. Os organismos superiores foram os primeiros a serem utilizados como fontes de enzimas. Por exemplo, estudos do processo de maltação na fabricação da cerveja revelaram a importância das enzimas do malte na mobilização de carboidratos e reservas de proteínas, levando a utilização do extrato de malte, rico em enzimas, em outros processos. O efeito do amaciamento da carne por mamão papaia, levou a um expressivo cultivo da planta com o propósito de produzir a enzima papaína da família das proteases. Outras enzimas são extraídas de órgãos de animais como, tripsina e quimotripsina do pâncreas de porco, álcool desidrogenase do fígado de cavalo e catalase do fígado bovino. Essas fontes apresentam algumas desvantagens tais como: o tecido utilizado na extração da enzima pode sofrer limitações de suprimento quando a demanda aumenta, além de requererem cultivos de grandes áreas e estarem sujeitas a intempéries.

Portanto, reconhecidamente as células microbianas cultivadas pelo processo de fermentação são fontes potenciais de enzimas, oferecendo uma série de vantagens: sua produção pode ser aumentada facilmente em menor tempo, ditado pelo mercado; apresentam uma natureza diversa permitindo a produção de várias enzimas; são relativamente fáceis de serem cultivadas em condições controladas e são altamente sensíveis às alterações genéticas, o que permite, usando técnicas da biologia molecular e celular, a obtenção de linhagens melhoradas quanto à produção e qualidade da enzima requerida; o processo de fermentação permite também a produção de enzimas com alta produtividade e menor custo.

As enzimas podem ser constitutivas ou indutivas. As constitutivas são sintetizadas em quantidades independentes do micro-ambiente celular e são aquelas enzimas presentes em quantidades constantes nas células, independente do estado metabólico do organismo, por exemplo: enzimas que participam das vias centrais do catabolismo, como a seqüência glicolítica. As enzimas indutivas são aquelas cuja síntese é sensivelmente aumentada pela presença de um indutor no meio de cultura. Os indutores normalmente são análogos ou derivados do substrato. Alguns indutores da síntese de enzimas comerciais são bastante conhecidos, como por exemplo: amido, dextrina e maltose indutores de α-amilase produzida por Bacillus sp; lactose, sacarose e monopalmitato de celulase por Trichoderma lignorum; lactose de lactase por Aspergillus nidulans; colesterol de lipase por Candida paralipolítica.

Atualmente, o número de enzimas identificadas que constam na lista da Comissão Internacional de Enzimas (E.C.) é de cerca de 3000. Porém, somente cerca de 60 enzimas tem aplicação industrial e são utilizadas em quantidades significativas, sendo que 75% correspondem a hidrolases. O mercado está distribuído principalmente em enzimas utilizadas em detergentes (37%), têxteis (12%), amido (11%), panificação (8%) e ração animal (6%), que usam em torno de 75% das enzimas produzidas industrialmente.

No que se refere à indústria de alimentos, a aplicação da tecnologia enzimática já é um fato consumado no mundo todo, com grande potencial no Brasil, devido à influência de empresas de setores de ponta na produção alimentícia, redução de custos e melhoria da qualidade. Conforme mostra o Quadro 1, o uso de enzimas pelo setor alimentício é amplo, principalmente no tratamento de tecidos vegetais e de polissacarídeos. Talvez os setores de alimentos e bebidas sejam os mais indicados para a absorção inicial de produtos e processos alternativos, que atendam as exigências do mercado consumidor ávido por soluções conforme os padrões atuais considerados ideais de alimentação e saúde.

 

Quadro 1. Principais enzimas comercializadas e suas aplicações.

ENZIMA

APLICAÇÃO

 α amilase, amiloglicosidase, ß amilase

Sacarificação do amido, em panificação ou produção de xaropes

Catalase

Eliminação da água oxigenada no processamento de alimentos

Lipase

Hidrólise ou interesterificação de óleos e gorduras

Glicose isomerase

Produção de isoglicose (High Fructose Syroup)

Hemicelulase ou xilanase

Hidrólise da hemicelulose no uso de resíduos celulolíticos.

Invertase

Inversão da sacarose

Lactase

Hidrólise da lactose (laticínios)

Renina ou coalho microbiano

Precipitação da caseína do leite-queijo

Naringinase

Remoção do amargo em citrus

Pectinases

Fermentação do cacau, extração de óleo de oliva, clarificação e extração de sucos, maceração de polpas.

Celulase

Produção de açúcares disponíveis, solubilização de parede celular

Protease

Produção de proteína hidrolisada, maturação de queijos, tenderização e cura de carnes

Fonte: IUPAC (1979).