Saneamento básico rural
Sobre o tema
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), a agricultura de base familiar reúne 14 milhões de pessoas, mais de 60% do total de agricultores, e detém 75% dos estabelecimentos agrícolas no Brasil.
É comum nessas propriedades o uso de fossas rudimentares (fossa "negra", poço, buraco, etc.), que contaminam águas subterrâneas e, consequentemente, os poços de água, os conhecidos poços "caipiras". Assim, há a possibilidade de contaminação dessa população, por doenças veiculadas pela urina, fezes e água, como hepatite, cólera, salmonelose, verminoses, entre outras.
A ampliação dos serviços de saneamento básico, especialmente no que diz respeito ao aumento de domicílios abastecidos com água de qualidade, é fundamental para a saúde e, em particular, para redução da mortalidade infantil.
Atentos a este problema, a Embrapa Instrumentação, sob a coordenação inicial do pesquisador Antônio Pereira de Novaes e, posteriormente, do pesquisador Wilson Tadeu Lopes da Silva - especializado em Química Analítica e Ambiental -, vem trabalhando com tecnologias destinadas ao Saneamento Básico Rural.
Desde o início, os trabalhos de Pesquisa & Desenvolvimento no tema, realizados pela equipe da Embrapa Instrumentação e parceiros, seguiram as seguintes premissas:
- Tecnologias simples e de eficiência adequada;
- As tecnologias desenvolvidas ou adaptadas devem necessitar de poucos insumos externos para atingir resultados adequados;
- Sistemas biológicos (exceto clorador), que sejam eficientes e de simples operação;
- Harmonização dos sistemas de tratamento com o ambiente, visando quebra de paradigma a respeito do morador do campo e os resíduos gerados na propriedade;
- Reciclagem segura de nutrientes e água na agricultura;
- Fácil apropriação pelo agricultor;
- Devem se adaptar bem à rotina da propriedade agrícola;
- Custos de instalação e manutenção acessíveis;
- Materiais para construção dos sistemas relativamente fáceis de serem encontrados em todo o território nacional;
- Projetos facilmente replicáveis.
Seguindo estas premissas, três tecnologias foram validadas e hoje estão sendo disseminadas em todo o território nacional. O Clorador Embrapa, como o próprio nome diz, é uma tecnologia simples, para possibilitar a cloração da água que será utilizada na residência rural.
A Fossa Séptica Biodigestora e o Jardim Filtrante são tecnologias para o tratamento do esgoto gerado por uma residência rural. As tecnologias são apresentadas em mais detalhes a seguir.
O Clorador Embrapa
Um dos principais entraves para clorar a água para o abastecimento doméstico está no fato da dificuldade do acesso à caixa d´água para a adição do cloro. O Clorador Embrapa, um sistema simples e barato, foi proposto e idealizado de tal maneira que se aproveita a própria energia hidráulica para levar o cloro diariamente até a caixa d´água das residências.
O esquema do Clorador é apresentado na figura 1. Como se pode observar, trata-se de material barato (tubos, conexões, válvulas e torneira) que podem ser encontrado em qualquer loja de materiais para construção. Sua instalação na rede de água é apresentada na figura 2.
O uso do Clorador Embrapa ocorre em batelada, conforme descrito: fecha-se o registro (A) que controla a entrada da água captada. Abre-se a torneira (B) para aliviar a pressão da tubulação que leva a água para a caixa, até o esgotamento de todo o líquido, para então ser novamente fechada. Prepara-se uma solução de cloro (1 colher rasa de café, de cloro granulado do tipo hipoclorito de cálcio 65%), suficiente para 1000 litros de água (nestas condições, a quantidade de cloro ativo no início da manhã fica em torno de 1,5 mg L-1 de cloro ativo, que atende a portaria nº 2914/2011 do Ministério da Saúde. Abre-se o registro do clorador (C) e coloca-se vagarosamente a solução de cloro, no receptor (D). Lava-se o receptor de cloro com um pouco de água e fecha-se a válvula (C). Finalmente é aberta a válvula (A) de entrada de água, sendo desta forma o cloro levado até a caixa d'água.
Figura 1: Esquema representativo do Clorador Embrapa, com destaque para seus componentes.
Figura 2: Instalação do Clorador Embrapa na rede de captação de água.
A água a ser clorada não deve ter cor ou sabor e possuir baixa turbidez (< 2 UFT), conforme preconiza a portaria no 2914/2011 do Ministério da Saúde. Caso estes parâmetros mínimos não sejam atendidos, deverá ser feito um tratamento prévio da água, visando as correções necessárias.
Geralmente, o clorador Embrapa é utilizado no abastecimento da água da residência quando a fonte utilizada é o poço.
A fossa séptica biodigestora
A maior contribuição do sistema de fossa séptica biodigestora é a viabilização do tratamento de esgoto doméstico e, consequentemente, a produção de resíduos com baixa incidência de coliformes termotolerantes, por ação de digestão fermentativa, utilizando-se de esterco bovino como inoculante neste processo.
A utilização do sistema de fossa séptica biodigestora proporciona um instrumento para o processo fermentativo de esgoto sanitário, em condições de anaerobiose.
O dimensionamento do sistema permite que o material depositado nas caixas fermente por aproximadamente 20 dias, período suficiente para uma eficiente biodigestão anaeróbia, permitindo que o efluente possa ser utilizado como um fertilizante em canteiros com plantações, com um custo próximo de zero.
A Fossa Séptica Biodigestora é um biorreator, cuja configuração básica (figura 3) é composta por três caixas d´água de fibra de vidro, ou fibrocimento de 1000 litros cada, que podem ser encontradas no comércio local. As duas primeiras caixas correspondem aos tanques de fermentação, onde efetivamente ocorre o processo de descontaminação. A terceira caixa de 1000 litros serve para coleta do efluente tratado.
O sistema trata somente o esgoto do vaso sanitário (águas negras), que contém grande quantidade de coliformes termotolerantes e alta demanda bioquímica de oxigênio (DBO). O restante do esgoto gerado na residência rural (lavanderia, cozinha, banho, etc) não tem o mesmo potencial patogênico das águas negras e além disso, sabões ou detergentes têm propriedades antibióticas que inibem o processo de biodigestão.
Para que o sistema funcione adequadamente, este é inoculado mensalmente com esterco bovino fresco. Este material, facilmente encontrado na área rural, é rico em bactérias anaeróbias celulolíticas, hemicelulolíticas, hidrolíticas, entre outras, que tornam a Fossa Séptica Biodigestora mais eficiente na remoção de sólidos, principalmente composto por materiais fibrosos e proteicos.
O efluente de esgoto tratado (EET) pela Fossa Séptica Biodigestora precisa passar por um processo de depuração. O solo possui esta capacidade, sendo esta propriedade bastante conhecida e relatada. Uma forma de dispor o EET no solo é como fonte de adubação controlada, cuja composição química melhora a fertilidade do solo, sendo esta comparada com o efeito de adubação química inorgânica do tipo NPK.
Assim, tem-se o tratamento do esgoto com a produção de um fertilizante líquido, muito atrativo para o proprietário rural. Outros detalhes a respeito da Fossa Séptica Biodigestora podem ser encontrados no item "Soluções tecnológicas", neste portal.
Figura 3: Esquema do sistema da fossa séptica biodigestora
Jardim filtrante (Área Alagada Construída ou Wetland)
O sistema consiste em uma área alagada construída, o qual representa ecossistemas artificiais com tecnologias que utilizam os princípios básicos da capacidade de descontaminação da água por áreas alagadas naturais (várzeas, manguezais, etc), com a finalidade de depurar a "água cinza". Esse sistema foi adaptado a fim de complementar o tratamento de esgotos nas áreas rurais, uma vez que a Fossa Séptica Biodigestora não trata a "água cinza".
As áreas alagadas construídas são utilizadas devido às suas propriedades de remoção e retenção de nutrientes, processamento da matéria orgânica e resíduos químicos, e redução das cargas de sedimentos descartados nos corpos receptores. O Jardim Filtrante apresenta como vantagens a facilidade de operação, o baixo custo de implantação e manutenção, além da ausência de gastos com energia elétrica.
O Jardim Filtrante desenvolvido na Embrapa é do tipo de fluxo horizontal subsuperficial. Trata-se de um pequeno lago, impermeabilizado com uma geomembrana de EPDM ou PVC. No interior do sistema, são colocadas pedras britadas e areia grossa, que farão a filtração do material particulado. A areia também terá a finalidade de servir de suporte para o desenvolvimento das raízes das plantas. O sistema é projetado de maneira que, quando em operação, o nível da água, fique ligeiramente abaixo do nível da areia.
Finalizada a instalação do meio filtrante e acertado o nível da água no interior do Jardim Filtrante, serão então incorporadas plantas macrófitas aquáticas utilizadas em paisagismo, para que o ambiente fique visualmente agradável. É interessante que exista biodiversidade para que contaminantes e nutrientes sejam melhor absorvidos pelas diferentes plantas.
Deve-se notar também que o processo de tratamento não ocorre somente pelas plantas, mas também pelos microrganismos que se multiplicam e que serão mais numerosos em quantidade e variedade, quanto maior for a biodiversidade de plantas. Antes do esgoto ser inserido no jardim filtrante em si, é necessário que seja feito um tratamento prévio para retirada de sólidos decantáveis e gordura. A Figura 4 apresenta um esquema de montagem um jardim filtrante.
Figura 5: Representação esquemática de um Jardim Filtrante (arte: Valentim Monzane)
Outros detalhes a respeito do Jardim Filtrante também podem ser encontrados no item "soluções tecnológicas".
Comunicação
O direito à informação é o principal alicerce para a construção da cidadania e nesse sentido o Programa de Informação para Todos da Unesco, tem como pressuposto: "A informação e o conhecimento são bens públicos globais e essenciais para o avanço da educação, da ciência e da cultura e ferramentas essenciais para promover a diminuição da distância entre o nível de informação dos pobres e dos ricos".
A literatura tem mostrado que na história do saneamento ao redor do mundo o aliado mais forte para o sucesso de qualquer programa é uma comunidade bem informada. Seguindo esta linha, o trabalho tem um forte apelo de instrumentos de comunicação voltados para o público geral.
Estes documentos vão desde textos técnicos da Embrapa até documentos como "Perguntas e Respostas", revista em quadrinhos "Papo Cabeça" e memorial descritivo de instalação da Fossa Séptica Biodigestora. Esses materiais estão disponíveis neste portal no item "publicações", assim como vídeos que ajudam a compreender, em detalhes, o funcionamento das tecnologias – basta acessar o item "vídeos".
Parceiros envolvidos em projetos de divulgação e/ou instalação, desde o ano de 2002
As parcerias entre órgãos públicos e privados, além de agentes do terceiro setor, se mostraram, ao longo dos anos, como um caminho eficiente a ser seguido, tendo sido impetradas ações no sentido de levar às parcelas da sociedade mais desprovidas, o conhecimento sobre o tema.
Fica claro que a soma de esforços é necessária para que se consiga vencer barreiras. Na tabela abaixo listamos as principais parcerias ocorridas nos últimos 12 anos.
Instituição | Abrangência | Tipo de parceria |
Fundação Banco do Brasil
| Nacional | Banco de Tecnologias Sociais – Financiamento de projetos para instalação de 2873 unidades de saneamento em todo o País. |
Coordenadoria de Assistência Técnica Integral – CATI
| Estado de São Paulo | Execução de projeto de instalação de 3760 unidades de saneamento em todo o estado de São Paulo (projeto Microbacias) |
Banco Mundial - Bird | Estado de São Paulo | Financiamento do projeto Microbacias - CATI |
Ministério do Desenvolvimento Agrário
| Nacional | Financiamento de projeto de pesquisa, desenvolvimento e divulgação das tecnologias |
Fundação Nacional de Saúde – Funasa
| Nacional | Apoio na divulgação e capacitação das tecnologias em simpósios e congressos da entidade |
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento | Nacional | Apoio no financiamento de projetos de P&D e divulgação das tecnologias |
Instituto Trata Brasil
| Nacional | Apoio na divulgação das tecnologias em todo o território nacional |
Fundação Cargill
| Estado de Rondônia | Projeto de divulgação e instalação de 29 unidades de saneamento no município de Porto Velho |
Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional – USAID | Estado de Rondônia | Financiamento do projeto da Fundação Cargill |
Centro Paula Souza – CEETEPS
| Estado de São Paulo | Instalação de unidades demonstrativas em escolas agrotécnicas no interior de São Paulo, com uso dos sistemas dentro da grade pedagógica dos cursos técnicos em agropecuária |
WWF-Brasil
| Estados do Mato Grosso e Acre | Articulação de projetos visando melhoria da qualidade ambiental de áreas sensíveis, como o Pantanal e Floresta Amazônica |
SOS Amazônia
| Estado do Acre | Projeto de divulgação e instalação de 20 unidades de saneamento nos municípios de Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima |
Pacto das Cidades pela Proteção das Cabeceiras do Pantanal - Pacto | Estado do Mato Grosso | Projeto de divulgação e instalação de 30 unidades de saneamento na bacia do Alto Paraguai (sudoeste do Mato Grosso) |
Banco HSBC | Estados do Acre e de Mato Grosso | Financiamento dos projetos da SOS Amazônia e Pacto |
Iniciativa Verde | Estado de São Paulo | Execução de projeto de instalação de 145 unidades de saneamento, proteção de nascentes e educação ambiental no interior de São Paulo |
Petrobrás - Ambiental | Estados de Minas Gerais e São Paulo | Financiamento de projetos (Iniciativa Verde e USP) |
Instituto Terra | Estados de Minas Gerais e Espírito Santo | Execução de projeto de instalação de 180 unidades de saneamento, proteção de nascentes e educação ambiental na bacia do rio Doce. |
Vale | Estados de Minas Gerais e Espírito Santo | Financiamento do projeto do Instituto Terra |
Comitê Guandu de Bacia Hidrográfica | Rio de Janeiro | Divulgação e capacitação dos sistemas da Embrapa na área de abrangência do Comitê – a mais importante do estado do RJ. |
Companhia Espírito Santense de Saneamento – Cesan
| Estado do Espírito Santo | Divulgação, capacitação e instalação de unidades demonstrativas no município de Santa Leopoldina |
Cooperativa Agroindustrial dos Produtores Rurais doo Sudoeste Goiano - Comigo | Estado de Goiás | Divulgação interativa das tecnologias de saneamento da Embrapa, na Feira Comigo 2014, em área nobre da feira com mais de 1000 m2 |
Sítio São João | Município de São Carlos | Educação ambiental para mais de 3000 alunos por ano das redes estadual, municipal e particular, onde se mostra produção de alimentos, proteção ambiental e saneamento básico rural |
Prefeitura Municipal de São Carlos | Município de São Carlos | Divulgação e instalação de unidades demonstrativas no município. Apoio às ações de educação ambiental do Sítio São João. |
Universidade de São Paulo - USP | Estado de São Paulo | Execução na instalação de unidades de saneamento nas cabeceiras do rio Mogi-Guaçú e Alunos de graduação e pós-graduação |
Universidade Federal de São Carlos | Estado de São Paulo | Alunos de graduação e pós-graduação |
Universidades Federais e Estaduais | Nacional | Divulgação em geral em congressos e palestras convidadas. |
Ecosys Lagos Ornamentais | Nacional | Empresa que licenciou o know-how do Jardim Filtrante, para comercialização do kit de instalação. |
Replicabilidade
Todo o material para a construção tanto da Fossa Séptica Biodigestora quanto o Clorador Embrapa pode ser adquirido em lojas de materiais de construção. A instalação dos sistemas é simples, podendo ser feita pelo próprio beneficiário.
No caso da Fossa Séptica Biodigestora, a Embrapa envia um memorial descritivo de instalação, que encontra-se neste portal. A manutenção da Fossa Séptica Biodigestora também é muito simplificada e requer somente a inoculação do sistema uma vez por mês com 5 litros de esterco bovino misturados com água, na entrada do sistema e a retirada do efluente tratado e aplicação no solo como fertilizante.
O Jardim Filtrante, como o próprio diz, basicamente é formado por areia, pedras e plantas ornamentais, o que dá ao sistema um aspecto paisagístico bastante interessante. A operação e manutenção também são bastante simplificadas, sendo basicamente a poda de algumas plantas que se desenvolvem em excesso, bem como a limpeza das caixas de gordura e de retenção de sólidos a cada 3 meses, aproximadamente.
Para facilitar a adoção, fez-se a parceria com a empresa Ecosys Lagos Ornamentais (Bauru – SP), que comercializa o kit de instalação, composto de geomembrana de EPDM, Bidim, sistema de controle de nível (Monge), flanges para geomembrana, tubos e conexões. Entretanto, caso o beneficiário não deseje adquirir o material, ele pode impermeabilizar o Jardim Filtrante com o uso de alvenaria.
Por tudo isso, a replicabilidade é enorme, tanto que já foram instaladas mais de 10.000 unidades em todo o território nacional, por meio de diversas parcerias.