Entrevista: Aposta sustentável
Desenhar caminhos que sejam capazes de acompanhar as necessárias transformações dos padrões de produção e consumo, com base em novos preceitos e oportunidades que se apresentam em todo o planeta, representa o objetivo da plataforma Brasil 2100. Por meio da prospecção de cenários e identificação de áreas portadoras de futuro, serão construídas visões alternativas para o futuro do País. Essa proposta inclui o projeto Brasil 2035, recorte de prazo menor dentro da plataforma, que aponta a bioeconomia como uma das grandes apostas de sua agenda estratégica.
Definida como a parte das atividades econômicas que captura valor a partir de processos biológicos e biorrecursos para produzir saúde, crescimento e desenvolvimento sustentável pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2006), a bioeconomia se fortalece quando a ciência busca conciliar inovações tecnológicas e sustentabilidade, tendo em vista a escassez de recursos naturais.
Elaine Coutinho Marcial, coordenadora-geral de Planejamento, Gestão Estratégica e Orçamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), está à frente da orientação metodológica, da análise e da produção dos conhecimentos reunidos nos estudos da plataforma Brasil 2100. Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília, Marcial atua em estudos sobre futuro e inteligência competitiva desde 1996, e coordenou a construção de diversos cenários prospectivos e análises de tendências e previsões.
XXI - Há discussões em relação aos caminhos para o desenvolvimento econômico, social e ambiental e as estratégias adotadas por diferentes países. Como o Brasil está debatendo seu futuro?
Elaine Marcial - Trabalhamos numa plataforma chamada Brasil 2100, iniciativa conjunta entre Ipea, Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor) e Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, na qual reunimos especialistas de diversas áreas da academia, representantes da sociedade civil e da administração pública a fim de identificar e discutir cenários e áreas portadoras de futuro, de modo a construir hoje o País que queremos. No estudo, destacamos quatro dimensões do desenvolvimento: social, econômica, territorial e político-institucional. Além dessas, água, meio ambiente e ciência, tecnologia e inovação são tratados como dimensões transversais essenciais para o desenvolvimento do País.
XXI - Dentro da proposta para 2100, há um recorte de uma projeção com um prazo mais curto. Por que trabalhar com duas perspectivas?
Elaine Marcial - No início, tínhamos uma preocupação: definir um horizonte mais extenso para que o foco da equipe não ficasse centrado apenas nos reflexos da atual crise econômica. O País vive uma crise que nos cega, retirando a capacidade de enxergarmos oportunidades. Mas em algum momento vamos sair dessa crise e precisamos ter um plano, até mesmo para lidar com esse momento. Hoje se fala em limitações no orçamento e é preciso fazer cortes. Mas onde? Em todos os setores? Linearmente? Existem áreas-chave que devem ser preservadas? Quando fazemos escolhas é necessário saber o que o futuro nos apresenta e considerar as competências de que dispomos. Em minha opinião, falta-nos essa visão estratégica de longo prazo. É imprescindível a existência de direcionamento estratégico que indique em quais áreas devemos apostar. Com isso, delineamos o prazo de 2100, pois nunca houve um estudo com essa perspectiva no Brasil. Mas a partir daí surgiu a necessidade de fazer uma série de estudos, com prazos intermediários.
XXI - O que levou a equipe a perceber a necessidade de dividir o estudo? E como foi definido o prazo inicial de 2035?
Elaine Marcial - Na ocasião em que começamos a conversar com os parceiros, percebemos ressalvas por parte deles e, então, resolvemos fazer um recorte com prazo mais curto, de pelo menos 20 anos. Esse tempo mínimo é importante quando se pensa sobre um país, uma vez que qualquer investimento levará dez ou quinze anos para estar finalizado. Nesse contexto, o ano de 2035 é o marco do primeiro estudo de uma série que produziremos. Quanto tempo entre a decisão da realização de uma pesquisa até seu produto final estar disponível no mercado? Numa obra de infraestrutura, quantos anos são necessários para ela estar pronta? E ainda é preciso mais algum tempo para avaliar seu impacto e se realmente trouxe o retorno esperado. Basta ver quanto tempo levou o desenvolvimento do etanol, e ainda se pesquisa novas matérias-primas. Em curto prazo, é possível ver onde o dinheiro é gasto, mas o resultado não aparece. Conheci um trabalho na Alemanha, de mudança da sua matriz energética para fontes renováveis, que é realizado há mais de trinta anos. Mas eles sabem onde querem chegar, têm um objetivo estratégico a ser atingido, as metas estão estabelecidas e acompanham-se os avanços, sendo possível obter o apoio da sociedade ao projeto. Os países não se tornam desenvolvidos da noite para o dia.
XXI - O documento em construção indica alguns temas que têm potencial para impactar os modelos de produção hoje e no futuro. Um deles é a bioeconomia. De que forma ela se insere nesses estudos?
Elaine Marcial - O objetivo do projeto é ter capacidade de definir as grandes apostas para o País e, em seguida, identificar o que chamamos de imãs – políticas que precisam ser criadas ou priorizadas para atrair a sociedade a caminhar naquele sentido. Nesse contexto, identifica-se a bioeconomia, assim como energia, Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e financiamento de longo prazo como temas-chave. Essas são questões prioritárias quando se pensa em desenvolvimento.
XXI - Como a bioeconomia pode ser incluída nas discussões sobre as oportunidades que se abrem para o Brasil?
Elaine Marcial - Algumas pessoas a consideram uma ciência, já outras a entendem como tendência. Teoricamente não podemos chamá-la de tendência, pois não se configura como um movimento consolidado. No meu entendimento, trata-se de um novo paradigma de produção, uma vez que ela orienta o comportamento das demais ciências. Acredito que, no futuro, teremos algo muito mais parecido com o que hoje chamamos de bioeconomia do que com o processo econômico tradicional. Eu não tenho dúvida de que o caminho será esse, pois temos fontes limitadas de insumos não renováveis e a população continua crescendo. Estamos exaurindo nosso planeta, e, nesse contexto, esse novo paradigma se mostra como uma alternativa futura.
XXI - O que esperar da bioeconomia como fator de enriquecimento dos cenários de futuro desenhados para o País?
Elaine Marcial - Um fator positivo que se espera dos novos processos de produção é a capacidade de absorção dos produtos pela própria natureza. É o caso de muitos dos novos materiais desenvolvidos, como a pesquisa para criar uma espuma biodegradável à base de fungos, que em um mês é absorvida pela natureza ao ser descartada, enquanto um material sintético, produzido a partir de petróleo, leva quase uma centena de anos para se decompor. Não se trata apenas da possibilidade de produzir permanentemente esses materiais, mas de não poluirmos o planeta. É necessário avaliar seu impacto na natureza.
XXI - E qual a solução que esse novo paradigma oferece?
Elaine Marcial - A proposta é utilizar a vida para produção de novos materiais. Assim, conseguimos manter a reposição das matérias-primas. É diferente, por exemplo, de um minério, que você extrai e acaba. Podemos até falar em reúso ou reciclagem, mas de qualquer forma estamos restritos àquela quantidade, não há como ampliar. A vida se reproduz e se renova. Essa é uma característica da bioeconomia – no início do processo de produção utiliza-se um insumo que pode ser produzido indefinidamente e, quando o produto final não tiver mais utilidade, existe a capacidade da natureza em absorvê-lo, diferentemente do que acontece com outros insumos não recicláveis.
XXI - O que é preciso para que ela se consolide no País e no mundo?
Elaine Marcial - O maior desafio é a geração de emprego e renda. No contexto da quarta revolução industrial – em que a robótica, a automação e a inteligência artificial excluirão inúmeros postos de trabalhos –, se a bioeconomia se mostrar eficiente nesse campo, poderá ser muito bem-sucedida. Essa tendência se revela porque ela já responde positivamente no campo da sustentabilidade. Percebemos que os modelos econômicos vigentes não são mais adequados. Juntando essas duas questões, a bioeconomia apresenta-se como um fato portador de futuro que poderá mudar a ordem mundial, tornando-se efetivamente um novo paradigma que orientará os vários processos de produção. Quando nos damos conta dos limites do planeta, temos que encontrar uma saída, como também gerar emprego e renda, principalmente para as próximas gerações.
XXI - Em outras situações, vimos que o meio ambiente tende a não ser prioridade na escolha dos consumidores quando compete com maior custo de produção. Em relação aos produtos gerados pela bioeconomia, você acredita que a sociedade está disposta a pagar um maior preço por eles?
Elaine Marcial - Não vejo a questão do custo como um problema central. Se tomarmos por base o caso do celular, no começo, pouquíssimas pessoas tinham acesso à tecnologia e os aparelhos eram caros. Hoje, três quartos da população brasileira têm celular. A tecnologia evoluiu e o preço caiu, ou seja, temos aparelhos com muito mais recursos a menor custo. Por sua vez, mesmo se o custo inicial for alto, mas apresentar maior vida útil, o produto torna-se vantajoso, como as lâmpadas de LED, por exemplo. Eu acredito que esse processo acontecerá com as áreas e produtos que venham a compor a base da bioeconomia.
XXI - É a mesma situação dos orgânicos? Esses produtos, apesar de seu maior preço, têm compromissos relacionados às condições dos trabalhadores e ao meio ambiente, e muitos já se dispõem a pagar esse custo.
Elaine Marcial - Não posso afirmar que esse movimento ocorrerá com os orgânicos, pois temos que considerar outra questão: é possível atender à demanda mundial por alimentos com esse tipo de produção? Se não resolvermos esse problema, não vamos avançar. Esses produtos continuarão em prateleiras diferenciadas, atendendo a um público restrito. As questões são complexas. Estamos em um momento de transição e são vários os fatores que devem ser considerados. Não se trata apenas de preocupação ambiental. É preciso que haja mudança cultural e que os avanços tecnológicos sejam capazes de atender às demandas da sociedade. Caso contrário, vamos continuar com uma parcela significativa da população excluída. Costumo dizer que ainda não conseguimos sair dessa crise mundial porque estamos tentando resolver um problema econômico atual com os meios e instrumentos do passado. Temos que pensar em novas formas para responder a essa situação e a bioeconomia é uma das possibilidades que hoje se apresenta.
XXI - Quais as oportunidades que surgem e como aproveitá-las?
Elaine Marcial - A integração da nanotecnologia com a biotecnologia surge como um mundo de possibilidades. Por exemplo: antes, a indústria têxtil utilizava apenas o algodão como matéria-prima. Agora há um predomínio dos materiais sintéticos, com funcionalidades não proporcionadas pelo algodão, como os tecidos usados por atletas, que absorvem o suor, e outros que não precisam ser passados. No entanto, trata-se de material sintético, que não apresenta um ciclo completo de reposição e reciclagem, pois não têm origem em insumos renováveis. O desafio da junção entre nano e biotecnologia é o desenvolvimento de novas matérias que apresentem as mesmas funcionalidades dos tecidos sintéticos, mas que sejam recicláveis e de possível reposição. Essa oportunidade existe e é visível em diversos setores. Mas há necessidade de investimento em um sistema de inovação, tanto de produtos quanto de processos, que gere spin-off1, abrindo espaço para mais inovações. •
¹ Spin-off: derivação não esperada e positiva.
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Juliana Miura
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