O uso do patrimônio genético no desenvolvimento de hortaliças
Onde está a solução para a produção de alimentos em condições adversas: altas temperaturas, mudanças climáticas ou ataque de pragas e doenças? Como aumentar a produtividade e a qualidade nutricional das hortaliças sem negligenciar a tradição alimentar dos brasileiros? A resposta certamente passa pelos bancos ativos de germoplasma (BAGs), que são estruturas que conservam amostras de germoplasmas – também conhecidas como acessos –, e reúnem o conjunto de materiais hereditários de espécies que garantem a rica variabilidade genética, imprescindível para as pesquisas realizadas no âmbito dos programas de melhoramento.
As pesquisas realizadas com os materiais preservados nos BAGs possibilitam o desenvolvimento de novas cultivares, garantindo o cultivo de alimentos, muitos originários de outros países, nas condições de clima e solo do Brasil. Além do aspecto inovador que viabiliza atender às demandas da cadeia produtiva, os bancos têm a função de conservar a riqueza do patrimônio genético.
A Embrapa Hortaliças mantém bancos e coleções de germoplasma de 23 culturas, totalizando mais de 10 mil acessos incorporados aos BAGs por meio de coletas realizadas em diversos estados brasileiros e de doações de agricultores e de instituições nacionais e estrangeiras. A quantidade e a procedência de lugares distintos tornam os bancos extremamente valiosos ao preservar a diversidade genética dos recursos vegetais que compõem a nossa biodiversidade.
Comparando, o BAG assemelha-se à uma biblioteca que guarda em seu acervo coleções que mantêm viva a história, a cultura, os hábitos e os costumes dos povos; ou, até mesmo, a um cofre, onde as pessoas mantêm os seus bens mais preciosos e valiosos. É nesse manancial de possibilidades que os pesquisadores procuram materiais genéticos que sejam fontes de características, como resistência a pragas e doenças, produtividade e eficiência na absorção e utilização de nutrientes, necessárias para o desenvolvimento de novas cultivares. Graças a esses achados, as pesquisas estão contribuindo com a oferta de alimentos, cada vez mais saudáveis, com a redução do uso excessivo de defensivos agrícolas, e, consequentemente, causando menos impacto ao meio ambiente.
Esse trabalho minucioso, realizado no âmbito dos programas de melhoramento vegetal, envolve uma equipe multidisciplinar de profissionais responsáveis pelo lançamento de mais de 100 cultivares em quase quatro décadas de existência da Embrapa Hortaliças.
Materiais genéticos reduzem tempo da pesquisa
Cada uma dessas cultivares sintetiza anos de pesquisas e, mesmo sendo fonte constante de consulta, os pesquisadores surpreendem-se com a variabilidade genética dos materiais disponíveis nos BAGs. A pesquisadora responsável pelo programa de melhoramento genético de batata-doce, Larissa Vendrame relata a experiência que teve durante o desenvolvimento da primeira cultivar de batata-doce de polpa-roxa da Embrapa, com previsão de lançamento em 2020.
“Em cinco anos, selecionamos os clones mais produtivos, de um universo de 16 acessos do BAG, e avaliamos cada um para características como resistência às principais doenças e pragas, qualidade de raiz e pós-colheita. O clone selecionado está em fase de obtenção de registro junto ao Ministério da Agricultura”, explica. Ela atribui a proeza de obter uma cultivar de propagação vegetativa em praticamente a metade do tempo necessário à ampla variabilidade genética e à boa qualidade dos materiais genéticos existentes no banco.
Não é raro as potencialidades dos acessos serem conhecidas na medida em que eles são utilizados. Por isso, é possível que na busca por uma característica específica, os pesquisadores deparem-se com outras possibilidades. O curador da coleção de germoplasma de alface e responsável pelo programa de melhoramento genético, Fábio Suinaga, passou por essa situação durante os trabalhos de desenvolvimento das cultivares de alface crespa BRS Leila e BRS Mediterrânea, lançadas em 2018.
O pesquisador estava buscando outras características da cultivar do tipo crespa quando notou a resistência ao calor de um dos materiais durante a avaliação das linhagens em campo. “Essa característica foi repassada à BRS Leila pelo seu ‘pai’, que já era conhecido pelas suas fontes de resistência a doenças de solo, por exemplo. Foi um brinde que nós ganhamos”, considera.
Outras possibilidades presentes nos BAGs estão relacionadas às fontes de fatores genéticos para potencializar os nutrientes dos alimentos. O curador do BAG Tomate e responsável pelo programa de melhoramento genético do tomateiro, o pesquisador Leonardo Boiteux, cita alguns exemplos obtidos com híbridos enriquecidos: o tomate BRS Nagai possui 25% a mais de vitamina C do que os demais que estão no mercado; e o BRS Zamir, do segmento grape, apresenta teor do pigmento antioxidante licopeno de até 144 µg/g, enquanto outras cultivares comercializadas no Brasil obtêm por volta de 40 µg/g.
O BAG Tomate possui cerca de 1,7 mil acessos, sendo que alguns dos materiais selvagens apresentam o dobro de teor de licopeno encontrado no híbrido BRS Zamir. Nesse universo também estão materiais genéticos que apresentam frutos com colorações variadas. “Cada cor está associada a uma composição nutricional. O banco de germoplasma funciona como uma espécie de ´reserva bancária´ de novos genes de interesse que pode ser acessada de acordo com a necessidade e com a estratégia adotada pela instituição”, reforça Boiteux.
Equipe multidisciplinar
Em conjunto com os pesquisadores da área de melhoramento e recursos genéticos, os fitopatologistas estão constantemente testando os acessos em busca de fontes de resistência a doenças e pragas. Durante as avaliações de germoplasmas de batatadoce de polpa-roxa, o pesquisador da área de nematologia, Jadir Pinheiro, encontrou um acesso com resistência a Meloidogyne enterolobii.
“Entre as espécies de nematoides-dasgalhas, M. enterolobii é o que apresenta maior dificuldade para encontrar materiais com resistência, pois é uma espécie altamente agressiva, multiplicando e causando danos em genótipos considerados resistentes a outras espécies de Meloidogyne. Essa identificação reforça a importância de conservar um BAG com grande variabilidade genética”, pontua o pesquisador.
Em alguns casos, as características desejáveis para uma cultivar resultam do cruzamento de acessos. O fitopatologista Carlos Lopes cita o caso do BRS Acará – um porta-enxerto para pimentão, lançado em 2018. Ele explica que o híbrido tem duas fontes de resistência a doenças do solo provenientes de dois materiais genéticos do BAG Capsicum usados no cruzamento.
Acessos são conservados em forma de sementes e in vivo
Na Embrapa Hortaliças, a maioria dos materiais genéticos é conservado ex situ, fora do seu ambiente natural e, geralmente, na forma de sementes mantidas em câmaras frias. É o caso das espécies de sementes ortodoxas – aquelas que se mantêm viáveis mesmo quando desidratadas e submetidas à baixa temperatura – como abóbora, berinjela, melão, pimenta e tomate.
A curadora do banco de germoplasma de Capsicum, Sabrina de Carvalho, explica que anualmente são multiplicados 50 acessos diferentes de pimenta e, após a caracterização, esses materiais são conservados em forma de sementes, em câmaras frias.
Outra forma de conservação ex situ é in vivo, no caso das hortaliças de propagação vegetativa, como o alho, a batata-doce e a mandioquinha-salsa, que são mantidas em estruturas de telado ou em campo aberto. Esses BAGs, como alguns outros, não possuem duplicidade do material como ocorre com os BAGs de sementes ortodoxas, reforçando a importância desses bancos in vivo para a manutenção da variabilidade genética dessas espécies.
O curador do banco de germoplasma do alho, o pesquisador Francisco Vilela, explica que, por não produzir a semente botânica, o alho precisa ser multiplicado constantemente. Todo ano, 250 plantas de cada um dos 140 acessos vão para o campo. Esses materiais genéticos são provenientes de regiões brasileiras tradicionais de plantio e de diversos países, inclusive da Ásia Central que é o centro de origem do alho.
“Guardamos os melhores bulbos para, no ano seguinte, selecionar os maiores bulbilhos e replantar. Mesmo assim, os germoplasmas têm sofrido um processo acelerado de degenerescência devido à infecção por vírus, já que alguns desses materiais estão no banco há mais de 40 anos” explica. Para revigorar os acessos, Vilela conta que os germoplasmas estão passando por um processo de limpeza viral em laboratório.
Até o momento, cerca de 60% dos materiais do BAG estão livres de vírus e são mantidos em telado para evitar a reinfecção por vírus. Tanto esforço tem justificativa. “Não posso afirmar com certeza que somos o único banco de germoplasma de alho do Brasil, mas é o que possui o maior número de recursos genéticos preservados”, ressalta Vilela.
Trabalho semelhante ao alho é realizado no banco de batata-doce. Em um telado, os 240 acessos estão duplicados em vasos, cujos substratos são substituídos anualmente. “Os primeiros materiais são da década de 80 e, considerando essa manutenção in vivo, existe sempre a possibilidade de perda. Por isso estamos constantemente introduzindo novas fontes a partir de doações de produtores”, destaca a curadora do BAG Batata-Doce, Larissa Vendrame.
BAG revitaliza regiões tradicionais de produção
Outra vertente dos bancos e das coleções de germoplasma é a conservação de variedades cultivadas em diversas regiões brasileiras. Graças a essa função dos BAGs, as regiões produtoras de alho do Rio Grande do Norte e do Piauí estão resgatando a tradição deixada de lado em virtude da perda do material genético. Um convênio firmado entre Embrapa Hortaliças, Sebrae e órgãos municipais viabilizou o resgate da cultivar Alho Branco Mineiro pelos agricultores desses dois estados.
De acordo om o pesquisador Francisco Vilela, os produtores perderam essa variedade em virtude da infecção de vírus. “A contribuição da Embrapa nesses projetos de revitalização é devolver às regiões produtoras as variedades perdidas pelos produtores ao longo do tempo, com o diferencial de estarem livre de vírus. Entregamos a cultivar melhorada e possibilitamos que eles voltem a utilizar a variedade que faz parte da história da região”, ressalta Vilela.
O resgate de uma tradição alimentar foi vivenciada também pela índia Cecília Awaeko, da etnia Apalai, durante evento realizado em 2017, na Embrapa Hortaliças, sobre conservação e uso de recursos genéticos. Ela “reencontrou” a batata-doce Guariba que a tribo dela acabou perdendo ao longo do tempo.
Padrão de qualidade
A realização de todas as atividades executadas em um BAG – coleta, intercâmbio, conservação, multiplicação, caracterização, avaliação, documentação e uso – exige um padrão de qualidade. Recentemente, a Embrapa Hortaliças por meio do BAG de Capsicum participou do projeto corporativo “QUALIVEG – Implementação e Monitoramento de Sistemas da Qualidade na Vertente Vegetal".
A curadora do BAG, Sabrina de Carvalho, explica que o objetivo da Embrapa é atingir esse padrão de qualidade em todos os bancos de recursos vegetais, conferindo também a rastreabilidade aos resultados. “É um trabalho minucioso que envolve desde instalações e condições ambientais adequadas até a identificação de embalagens para conservação de sementes, além da padronização de procedimentos para as atividades realizada nos BAGs e a capacitação dos empregados”, conclui.
Gislene Alencar (MTb/MG 05653 JP)
Embrapa Hortaliças
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