Política e legislação

Conteúdo migrado na íntegra em: 09/07/2021

Autores

Isabel Cristina Vinhal Freitas - Embrapa – Secretaria de Inovação e Negócios

Aluisio Goulart Silva - Embrapa Alimentos e Territórios

Fábio Silva Macêdo - Embrapa – Secretaria de Inovação e Negócios

 

No Brasil, a compreensão do atual sistema de regulação da produção e comercialização de sementes e mudas requer uma breve abordagem do novo ordenamento econômico global, em que as relações comerciais entre os diversos mercados mundiais passaram a ser pautadas em acordos multilaterais com o objetivo de reduzir as distorções e os obstáculos ao comércio internacional e resguardar os direitos de propriedade intelectual inerentes aos países signatários.

A proteção de cultivares apenas começa a ser referida, de maneira expressa, em acordos internacionais, com a criação da União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas (Upov). A Upov se trata de uma organização intergovernamental com sede em Genebra, na Suíça. Foi estabelecida por meio da Convenção para a Proteção de Novas Variedades de Plantas ocorrida em 1961 em Paris, tendo sido revisada em 1972, 1978 e 1991. Objetiva proteger o direito de propriedade industrial de novas cultivares de plantas, com a missão de fomentar um sistema eficaz para a proteção das espécies vegetais, com a finalidade de promover o desenvolvimento de novas cultivares para o benefício de toda a sociedade. Atualmente se encontram vigentes os dois tratados: Ata de 1978 da Upov (Upov/1978) e a Ata 1991 da Upov (Upov/1991). A Upov/1978 traz proteções mais brandas para novas cultivares e a proibição da dupla proteção para uma mesma espécie botânica (art. 2º, Upov/1978), ou seja, uma proteção por patente e outra, concomitante, mediante um sistema sui generis, que pode ser compreendida no Brasil como a proteção de cultivar. A Upov/1991 traz proteções mais rígidas, bem como não restringe a dupla proteção.

Nesse sentido, foi assinado, em 1994, o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Adpic ou Trips), assinado em 1994. Trata-se de um acordo que estipula uma proteção mínima da propriedade intelectual em âmbito mundial, para corrigir a prática de infrações a essa tutela, elevando o nível de proteção em todos os membros e garantindo essa proteção mediante procedimentos judiciais predeterminados que sejam ágeis e efetivos. O acordo estabelece, entre outras questões, que os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) devem estabelecer um sistema de proteção de variedades de plantas, seja por patentes seja por outro mecanismo efetivo sui generis ou, ainda, por meio da combinação de ambos.

 

Proteção de cultivares no Brasil

Sob direta influência da internalização do Trips em 1995, foi promulgado no Brasil um conjunto de leis que visavam estabelecer a proteção de praticamente todas as áreas da propriedade intelectual, entre elas, a Lei nº 9.456 ou Lei de Proteção de Cultivares (LPC), a qual estabeleceu o mecanismo sui generis de proteção de cultivares atualmente vigente no País. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto nº 2.366, de 5 de novembro de 1997, e representa o primeiro ato legal com o intuito de garantir os direitos dos obtentores de novas variedades vegetais no Brasil.

De acordo com a LPC, é passível de proteção a nova cultivar ou a cultivar essencialmente derivada, de qualquer gênero ou espécie vegetal, que seja distinguível de outras cultivares e espécies vegetais por um conjunto mínimo de características morfológicas, fisiológicas, bioquímicas ou moleculares, herdadas geneticamente.

No Brasil, o depósito de pedidos de Proteção de Cultivares, que engloba novas cultivares e cultivares essencialmente derivadas, ocorre no Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC), órgão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Essa proteção não deve ser confundida com o Registro Nacional de Cultivares (RNC), também realizado no Mapa, registro esse necessário para que mudas e sementes possam ser multiplicadas e vendidas comercialmente no Brasil, independentemente do direito de exclusividade.

O conceito de “cultivar” refere-se à variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos.

A "nova cultivar" consiste naquela que não tenha sido oferecida à venda no Brasil há mais de 12 meses em relação à data do pedido de proteção e que, observado o prazo de comercialização no Brasil, não tenha sido oferecida à venda em outros países, com o consentimento do obtentor, há mais de 6 anos para espécies de árvores e videiras e há mais de 4 anos para as demais espécies.

A cultivar "essencialmente derivada" (que também deve atender ao disposto no parágrafo anterior) refere-se àquela que é:

a) predominantemente derivada da cultivar inicial ou de outra cultivar essencialmente derivada, sem perder a expressão das características essenciais que resultem do genótipo ou da combinação de genótipos da cultivar da qual derivou, exceto no que diz respeito às diferenças resultantes da derivação;

b) claramente distinta da cultivar da qual derivou, por margem mínima de descritores, de acordo com critérios estabelecidos pelo SNPC.

No Brasil, é permitida também a proteção às cultivares que não atendam ao requisito de novidade com a finalidade de obtenção de direitos sobre cultivares essencialmente derivadas da cultivar protegida. Nessa situação, devem ser obedecidas as seguintes condições cumulativas:

a) O pedido de proteção deve ser apresentado até 12 meses após o estabelecimento dos descritores para a espécie.

b) A primeira comercialização da cultivar deve ter ocorrido há, no máximo, 10 anos da data do pedido de proteção. A proteção é concedida pelo período remanescente aos prazos previstos pela lei, considerada, para tanto, a data da primeira comercialização.

A legislação brasileira considera que o prazo de proteção é limitado a 15 anos para a maioria das espécies, inclusive para o arroz, exceto para espécies de árvores e videiras, cujo prazo estende-se para 18 anos, prazo esse que é considerado a partir da data da concessão do Certificado Provisório de Proteção (LPC, art. 11). A proteção é válida apenas no país em que foi requerida. Obtido o Certificado Provisório de Proteção ou o Certificado de Proteção de Cultivar, o titular fica obrigado a enviar ao órgão competente duas amostras vivas da cultivar protegida (uma para manipulação e exame, outra para integrar a coleção de germoplasma) e também a manter, durante o período de proteção, amostra viva da cultivar protegida à disposição do órgão competente (LPC, art. 22).

A LPC confere alguns privilégios em favor do agricultor, em especial ao pequeno produtor rural. Ao agricultor é facultado reservar parte do material de plantio para uso próprio, sem que tenha que pagar royalties ao titular da proteção; ao pequeno produtor rural, que ele produza suas próprias sementes e as negocie por meio de doação ou troca com outros pequenos produtores.

No contexto da agricultura familiar, essas práticas são consideradas comuns, especialmente quando se trata de sementes de arroz e outros produtos que compõem a alimentação básica. Nesses casos, o importante é evidenciar que o sucesso ou o fracasso do resultado da produção no campo está condicionado à qualidade da semente que foi reservada e multiplicada pelo próprio agricultor, fato que justifica os intensos trabalhos de transferência de tecnologia para capacitação de produtores em produção de sementes de qualidade.

A proteção da cultivar garante ao titular que o material de propagação da nova variedade de planta não seja produzido para fins comerciais, oferecido à venda ou à comercialização sem sua prévia autorização. Assim, o titular tem o direito à reprodução comercial no território brasileiro, ficando vedado a terceiros, durante o prazo de proteção sem sua autorização: 

  • Produção ou reprodução (multiplicação).
  • Condicionamento para fins de propagação.
  • Oferecimento à venda.
  • Venda ou outro tipo de comercialização.
  • Exportação.
  • Importação.
  • Armazenagem para qualquer uma das finalidades acima.

As empresas que atuam na área de pesquisa em melhoramento genético vegetal e os próprios melhoristas também são privilegiados por essa lei. Para efeito de desenvolvimento de pesquisa científica e/ou trabalhos de melhoramento vegetal, materiais protegidos podem ser utilizados sem a prévia autorização do titular da proteção. Portanto, a LPC interessa a todos: aos agricultores, pela oportunidade que têm de optar por materiais novos e melhorados pela pesquisa, em uma diversidade de opções; ao agricultor especializado na produção de sementes, que passa a contar com novas opções de negócios, com riscos minimizados; ao obtentor, que resguarda o direito ao retorno dos investimentos realizados em anos de pesquisa; e, ao governo, que poderá contar com uma agricultura mais competitiva, sustentável e rentável.

Na Embrapa, o processo para instrução de novo pedido de proteção de cultivar é regulamentado pela norma Procedimentos para gestão estratégica da proteção intelectual de ativos da Embrapa (Norma nº 037.013.004.003).

A denominação da cultivar a ser protegida pela Embrapa deve ser precedida da sigla BRS como padrão. No entanto, essa determinação pode ser objeto de flexibilização desde que negociada previamente pela Embrapa e parceiro(s), detalhada no respectivo instrumento jurídico e que atenda a um dos seguintes requisitos: 1) a cultivar for cotitulada entre Embrapa e parceiro(s); ou 2) a cultivar for de propriedade exclusiva de um parceiro.

 

Registro de Cultivares no Brasil

No Brasil, o Mapa estabeleceu mecanismos para a organização, sistematização e controle da produção e comercialização de sementes e mudas, e instituiu, por meio da Portaria nº 527, de 30 de dezembro de 1997, o Registro Nacional de Cultivares (RNC)

O RNC tem por finalidade habilitar previamente cultivares e espécies para a produção e a comercialização de sementes e mudas no País, independentemente do grupo a que pertencem – florestais, forrageiras, frutíferas, grandes culturas, olerícolas, ornamentais e outros.

O RNC é regido pela Lei nº 10.711, de 2003, regulamentado pelo Decreto nº 10.586, de 2020, sendo que a geração de novas cultivares se traduz em altas tecnologias transferidas para o agronegócio, para o aumento da produtividade agrícola e da qualidade dos insumos e dos produtos deles derivados. As cultivares são disponibilizadas ao agricultor com os mais recentes avanços da pesquisa em genética e melhoramento vegetal, transformadas em insumos, sob a forma de material de propagação.

O Decreto nº 10.586, de 18/12/2020, entrou em vigor em 21 de março de 2021 e, dentre as novidades trazidas, cita-se a validade do registro de cultivares, prevista no art. 22 do referido ato normativo, que passa a ser de 15 anos e que pode ser renovada por iguais períodos, por solicitação do mantenedor. Esse artigo visa retirar da listagem os materiais que não estão mais sendo utilizados no Sistema Nacional de Sementes e Mudas (SNSM).

A Lei nº 10.711, de 2003, trata-se de uma legislação abrangente, que procura regular todas as etapas do processo produtivo inerentes à cadeia produtiva de sementes e mudas, bem como a certificação e a comercialização desses produtos no País por meio do SNSM. 

O SNSM compreende as seguintes atividades:

  1. Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem).
  2. RNC.
  3. Produção de Sementes e Mudas.
  4. Certificação de Sementes e Mudas.
  5. Análise de Sementes e Mudas.
  6. Comercialização de Sementes e Mudas.
  7. Fiscalização da Produção, do Beneficiamento, da Amostragem, da Análise, da Certificação, do Armazenamento, do Transporte e da Comercialização de Sementes e Mudas.
  8. Utilização de Sementes e Mudas (Lei nº 10.711/2003, art. 3º, incisos 1º-8º).

Com o estabelecimento do RNC, o agricultor brasileiro passou a contar com um novo instrumento de ordenamento de mercado, cujo objetivo maior é protegê-lo da venda indiscriminada de sementes e mudas de cultivares não testadas ou validadas para as diversas condições de solo e clima, sob as quais a agricultura brasileira é explorada.

A inscrição de cultivares no RNC pode ser requerida por qualquer pessoa física ou jurídica que: obtenha ou introduza uma nova cultivar; detenha os direitos de proteção previstos na Lei nº 9.456, de 25 de abril de 1997; seja legalmente autorizada pelo obtentor.

Para fins de registro de cultivar, é importante entender alguns conceitos:

Mantenedor é a pessoa física ou jurídica que se responsabiliza por tornar disponível um estoque mínimo de material de propagação de uma cultivar inscrita no RNC, conservando suas características de identidade genética e pureza varietal. Cada cultivar tem somente uma única inscrição no RNC, e a sua permanência está condicionada à existência de pelo menos um mantenedor. O mantenedor que, por qualquer motivo, deixar de fornecer material básico ou de assegurar as características declaradas da cultivar inscrita, terá seu registro excluído do registro da cultivar no RNC.

O Valor de Cultivo e Uso (VCU) é o valor intrínseco de combinação das características agronômicas da cultivar com as suas propriedades de uso em atividades agrícolas, industriais, comerciais e/ou de consumo in natura.

As cultivares devem ser previamente avaliadas, antes de sua inscrição no RNC. Cultivares de algumas espécies devem ser, previamente, submetidas a ensaios para determinação do VCU, conforme requisitos estabelecidos para a cultura, ou ensaios de adaptação, quando não existem requisitos estabelecidos para avaliação do VCU.

Os ensaios de VCU devem obedecer aos critérios estabelecidos pelo Mapa e contemplar o planejamento e o desenho estatístico que permitam a observação, a mensuração e a análise dos diferentes caracteres das distintas cultivares, assim como a avaliação de seu comportamento e qualidade.

Ao instalar os ensaios de VCU, o interessado deve comunicar ao Mapa a data de início e o local de instalação até 30 dias da instalação dos referidos ensaios, para fins de fiscalização e supervisão. Os ensaios de VCU devem obedecer aos critérios estabelecidos pelo Mapa, de acordo com a cultura. Os resultados dos ensaios de VCU são de exclusiva responsabilidade do requerente da inscrição, podendo ser obtidos diretamente por qualquer pessoa física ou jurídica de direito público ou privado, de comprovada capacidade e qualificação.

Atualmente são exigidos ensaios para a determinação do VCU para 29 espécies vegetais, entre elas, o arroz. Os critérios mínimos a serem observados nesses ensaios foram estabelecidos pela Portaria nº 294/1998; Instrução Normativa nº 06/2003; Instrução Normativa nº 23/2008; e Instrução Normativa nº 58/2008.

São dispensadas da inscrição no RNC: cultivar importada para fins de pesquisa ou realização de ensaios de VCU, em quantidade compatível com a aplicação, mediante justificativa técnica e atendida a legislação específica; cultivar importada com o objetivo exclusivo de reexportação; cultivar local, tradicional ou crioula, utilizada por agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas.

Extensão de Cultivo ou Extensão de Uso: os ensaios de extensão de cultivo de uma cultivar já inscrita no RNC devem ser informados ao RNC/Mapa, acompanhados dos respectivos resultados de avaliação da produtividade da cultivar em relação às testemunhas, com os parâmetros utilizados nos ensaios de VCU em relação ao número de locais e delineamento experimental, para a ampliação da sua região de adaptação.

O Cadastro Nacional de Cultivares Registradas (CNCR), gerenciado pela Coordenação de Sementes e Mudas do Mapa, é alimentado com informações fornecidas pelos detentores, pelos detentores dos direitos de propriedade intelectual e/ou pelo introdutores de cultivares, os quais assumiram a função de avaliação e recomendação das novas cultivares para cultivo nas diversas regiões do País e de manutenção de um estoque mínimo de material básico de propagação das cultivares, com a conservação de suas características de identidade genética e pureza varietal.

O CNCR visa incentivar a adoção de cultivares tecnicamente distintas, homogêneas e estáveis e que possuam um valor de cultivo e uso identificado capaz de maximizar os resultados produtivos em campo.

As atividades de produção, beneficiamento, embalagem, armazenamento, análise, comércio, importação e exportação de sementes e mudas estão sujeitas à inscrição no Renasem, exceto para agricultores familiares, assentados da reforma agrária e indígenas que multiplicam sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização entre si, conforme estabelecido na LPC.

Vale frisar que a organização do sistema de produção de sementes e mudas em todo o território nacional, além do processo de certificação, é de responsabilidade do Mapa, que responsabiliza o produtor pela identidade e qualidade do material produzido.

No processo de certificação, as sementes podem ser produzidas segundo as seguintes categorias: semente genética, semente básica, semente certificada de primeira geração – C1 e semente certificada de segunda geração – C2. Estas três últimas são obtidas pela reprodução de, no máximo, uma geração da categoria imediatamente anterior.