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Engenharia genética: decifrando o código da vida
Um feijão resistente à maior praga que assola a cultura, um algodão capaz de aguentar a seca e uma soja que pode ser manejada com uma nova classe de herbicidas. Os três protagonistas da matéria principal desta edição atestam a sofisticação da pesquisa científica brasileira. Eles são fruto da engenharia genética, ciência que atua no código genético dos seres vivos.
O melhoramento genético, feito desde quando o homem deixou a vida nômade para plantar e criar animais, atingiu escalas moleculares nos dias de hoje. A escolha dos produtores por cabras com mais leite como matrizes reprodutoras e por exemplares de trigo mais viçosos para fornecer sementes deu lugar à análise do perfil genético e foi mais além. Um gene (pedaço de DNA) de uma espécie agora pode ser inserido no código genético de outra, levando com ele características valiosas para o novo ser vivo.
A engenharia genética tem criado seres que resistem às intempéries, produzem mais em menos tempo e demandam menos químicos. Questões como a fome, mudanças climáticas e sustentabilidade ambiental, econômica e social passarão cada vez mais pela capacidade humana de entender e trabalhar com a dupla hélice do DNA. O Brasil está na vanguarda desse conhecimento como demonstram as histórias das próximas páginas.
Investimentos financeiros continuados são ainda fundamentais para viabilizar a inserção de materiais geneticamente modificados no mercado. A liderança nesse processo está com a iniciativa privada representada por grandes empresas multinacionais. O Brasil é um grande consumidor dos materiais desenvolvidos por essas corporações. Somos hoje o segundo maior produtor de plantas geneticamente modificadas, com 40,3 milhões de hectares plantados. Apenas os Estados Unidos estão na frente, com 70,2 milhões.
A interferência do homem na natureza remonta às civilizações antigas que utilizavam microrganismos nos processos de fermentação para produzir vinho, cerveja e produtos lácteos. Na agricultura e na produção animal, gradativamente e de forma empírica, o homem passou a melhorar as plantas e os animais domésticos com o objetivo de desenvolver produtos com mais qualidade. No final do século XIX, com a descoberta da célula e de que cópias do material genético são repassadas quando as células se multiplicam, o homem começou a utilizar esse conhecimento de forma planejada. Ainda no século XIX, o monge Gregory Mendel descreveu as leis da genética ao fazer cruzamentos de ervilhas e descobrir o segredo da hereditariedade.
Dessa forma, foram criadas as bases para o melhoramento genético tradicional − os cientistas realizavam o cruzamento entre espécies compatíveis para obter uma planta ou animal melhorado. O melhoramento genético de plantas envolve a criação de variabilidade, a seleção de genótipos com características desejáveis, e testes para avaliação de genótipos superiores.
Na década de 1970, a limitação imposta pelas barreiras da incompatibilidade entre espécies é rompida. O surgimento da engenharia genética possibilita a transferência de genes entre diferentes espécies − bactérias e animais; insetos e plantas, por exemplo. "Permite a transferência de um ou mais genes, de forma precisa e controlada e viabiliza soluções inovadoras fora da base genética da espécie-alvo", completa Alexandre Nepomuceno (foto), pesquisador da Embrapa Soja, presidente do Comitê Gestor do portfólio de Engenharia Genética para o Agronegócio da Embrapa e membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
O uso da engenharia genética na medicina e na indústria ocorre desde a década de 1970, mas somente nos anos 1990 começou a ser utilizada na agricultura. Esse cenário vem mudando constantemente graças às técnicas utilizadas e às novas características genéticas introduzidas em plantas, animais e microrganismos, e no que se refere a questões regulatórias, sociais, econômicas e políticas envolvidas na adoção da tecnologia.
É o que mostram três resultados alcançados pela pesquisa agropecuária tratados nesta reportagem. O Sistema Cultivance, que conta com uma soja transgênica − OGM −, surge como opção tecnológica para o manejo de áreas afetadas por plantas daninhas de difícil controle. Outro sistema promete driblar o efeito devastador do vírus do mosaico-dourado que ataca as lavouras de feijão. E o primeiro resultado positivo no mundo com gene DREB em algodão revela-se promissor para uma cotonicultura tolerante a condições de seca.
Revolução nas lavouras e nos laboratórios
A engenharia genética figura como uma das ferramentas atuais mais relevantes para incrementar a produção de alimentos nutritivos, de forma segura e abundante, mesmo diante dos desafios das mudanças climáticas. Destaca-se o rápido avanço do uso de engenharia genética de precisão, o que permite editar qualquer tipo de genoma com precisão cirúrgica e pontual.
Uma técnica de engenharia genética que vem sendo refinada em todo o mundo é a do RNAi (RNA interferente ou RNA de interferência). "É um mecanismo que inibe a expressão gênica ou dificulta a transcrição de genes específicos", explica Alexandre Nepomuceno. Por meio dessa técnica, é possível ativar um mecanismo de silenciamento gênico, no qual o cientista busca um gene vital do organismo a ser combatido, seja ele uma bactéria, um vírus, um inseto ou mesmo uma planta daninha. Para tornar o feijão imune ao vírus do mosaico-dourado (veja matéria na página 26), por exemplo, os pesquisadores da Embrapa utilizaram o mecanismo do RNA interferente.
A biologia sintética está permitindo utilizar as informações genômicas com novas técnicas de engenharia genética de precisão e síntese artificial de DNA a custos reduzidos, que permitem desde construir um "novo" código genético até a inserção de elementos artificiais em organismos vivos para reprogramá-los para produzir novos compostos. São utilizados aqui alguns princípios adotados pela engenharia elétrica para construir circuitos – de liga e desliga − dentro de organismos vivos. O objetivo é tentar construir circuitos parecidos com os elétricos para programar genes e proteínas de seres vivos (bactérias, plantas).
Entre as várias aplicações da biologia sintética, o professor da Colorado State University Maurício Antunes destaca a produção de plantas sentinelas que funcionam como sensores do meio ambiente. "Elas processam informações do meio ambiente e respondem de diferentes formas", relata. Tais pesquisas não estão disponíveis comercialmente em plantas, mas já existem exemplos no ramo farmacêutico. Entre as aplicações práticas, Antunes destaca um remédio (artemísia) para tratamento de malária. "O remédio é produzido em uma levedura geneticamente modificada, utilizando tecnologia de biologia sintética, o que reduz consideravelmente os custos", explica.
Como se dá a transformação genética em plantas
Em plantas, os métodos mais utilizados para introdução da construção genética de interesse no organismo-alvo é feita por biobalística ou via bactéria Agrobacterium tumefaciens. A biobalística consiste em inserir através de microprojéteis fragmentos de ácidos nucleicos de interesse em células ou tecidos. "A técnica de biobalística espalha fragmentos de DNA em várias partes do genoma, dificultando muitas vezes os processos posteriores de seleção em programas de melhoramento".
Apesar de as primeiras plantas geneticamente modificadas a entrar no mercado terem sido desenvolvidas por biobalística, hoje mais de 90% dos eventos comerciais liberados utilizam Agrobacterium como método de transformação. A Agrobacterium funciona como um vetor que carrega e transfere o DNA de interesse. "A utilização de Agrobacterium torna o processo de transformação mais eficiente do ponto de vista molecular. Normalmente, a inserção dos elementos de DNA feita pela bactéria ocorre de forma muito mais precisa e pontual, em regiões únicas do genoma-alvo", diz Nepomuceno.
Etapas do processo de desenvolvimento de OGMs
Colocar no mercado um OGM ou qualquer outro produto que utilize as novas técnicas de engenharia genética é uma tarefa desafiadora, de longa duração, envolvendo várias fases, e que exige conhecimentos especializados e altos investimentos econômicos. Só o processo de criação de plantas geneticamente modificadas pode levar de dez a 20 anos.
Seis etapas básicas são consideradas: 1) identificação de genes de interesse (fase que engloba o processo de descoberta de genes de interesse), 2) prova de conceito (seleção de evento elite e análise de biossegurança para assegurar equivalência do produto), 3) desenvolvimento de ativo (testes a campo em diferentes regiões), 4) desenvolvimento avançado (processo para regulamentar a tecnologia), 5) pré-comercialização (registro de variedades) e 6) lançamento (que envolve comunicação com a sociedade e marketing do produto).
Com os devidos ajustes, essas etapas também podem ser consideradas para o desenvolvimento de qualquer produto que utilize engenharia genética em sua elaboração, sejam animais, microrganismos ou outros produtos que utilizem a engenharia genética. "Utilizamos procedimentos de controle de todas as etapas para garantir a qualidade, acurácia, precisão e idoneidade de todos os métodos, resultados e informações gerados na elaboração do produto", destaca Nepomuceno.
Leia mais:
- Sistema Cultivance - A ciência fazendo história
- Um sistema e um feijão transgênico para enfrentar o mosaico-dourado
- Algodão tolerante à seca
Lebna Landgraf
Embrapa Soja
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