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Artigo - Lentilhas: muito além do Réveillon
A lentilha (Lens culinaris) é um dos alimentos mais antigos da humanidade. Desde aproximadamente 7000 a.C., essa espécie já era cultivada no Sudoeste da Ásia. Segundo a Bíblia, Esaú cedeu a Jacó seu direito de primogenitura em troca de um prato de lentilhas, como mostra esta passagem: “Então Jacó serviu a Esaú pão com ensopado de lentilhas. Ele comeu e bebeu, levantou-se e se foi. Assim Esaú desprezou o seu direito de filho mais velho” (Gênesis 25:34).
É uma leguminosa de alto valor alimentício, importante fonte de proteínas, de vitaminas e minerais como cálcio e ferro, além de possuir em sua constituição os aminoácidos essenciais isoleucina e lisina. A ingestão de alimentos ricos em fibras, como as lentilhas, ajuda na perda de peso; as fibras, além de melhorarem o processo digestivo como um todo, proporcionam a sensação de saciedade. Este grão é bastante versátil na preparação de pratos, sendo de mais fácil cocção e de maior digestibilidade que o feijão.
Milza Lana (no livro Hortaliças Leguminosas, Embrapa Hortaliças, 2016) menciona que no Brasil se consome a lentilha de grão graúdo, tegumento (casca) verde-acinzentado e cotilédone amarelo, vendida na forma de grão inteiro com casca; outros tipos podem ser encontrados em lojas especializadas. Na Índia e no Oriente Médio, a lentilha de cotilédone laranja, chamada também de lentilha vermelha, é muito popular, sendo comercializada principalmente na forma de grão partido sem tegumento. Esta lentilha quando cozida se desintegra formando um purê grosso, seco e de cor amarelada. Por isso é usada principalmente para o preparo de purês, sopas e pratos indianos como dhals, sendo seu sabor realçado pelo uso de temperos e especiarias. Em países produtores e tradicionais consumidores, a lentilha verde também é comercializada enlatada. Flocos de lentilha, com aparência similar à de flocos de aveia, podem ser usados em barras nutritivas ou em cereais matinais com o benefício de ter o dobro do teor de proteínas dos cereais. Lentilhas na forma de purê são um ingrediente para bolos e pães, contribuindo para modificar a textura e adicionar fibras e proteínas à massa. A lentilha é uma ótima opção para pessoas com restrição alimentar relacionadas ao consumo de proteína animal e da intolerância ao glúten. Os grãos de lentilha têm ganhado importância entre aqueles que valorizam uma alimentação saudável e em mercados gourmet. Existe uma demanda crescente de proteína vegetal por segmentos que buscam alimentos saudáveis bem como ampliar o leque de alternativas para dietas vegetarianas ou pessoas celíacas.
Embora a lentilha seja um alimento importante na base alimentar de vários povos, este grão é relativamente pouco conhecido e ainda menos consumido no Brasil, sendo que boa parte da população consome apenas em datas específicas, como no Réveillon. Acredita-se que comer lentilhas na noite do réveillon traz boa sorte para o ano novo - as pessoas consomem para ganhar dinheiro e ter um próspero Ano Novo - isso porque o grão de lentilha, com o seu formato de disco redondo ou oval e sua forma achatada, está associado às moedas e, portanto, simboliza sorte financeira.
O Brasil tem importado a totalidade da lentilha destinada ao consumo. Em 2019 (dados até o mês de novembro em Secex), o país importou cerca de 13,5 mil toneladas no valor de US$ 7,2 milhões, principalmente do Canadá, um dos maiores produtores e exportadores de lentilha do mundo. Essa importação ocorre devido, principalmente, à falta de interesse dos grandes importadores e/ou empacotadores em estimular a produção nacional, bem como a inexistência de tradição de cultivo por parte de nossos agricultores. Aliado a esses fatores, não se dispunha no Brasil de tecnologia adequada para a produção, tampouco de cultivares adaptadas às nossas condições de clima e solo.
A área cultivada no Brasil é muito pequena, apesar de ser uma boa opção para a agricultura irrigada de inverno, principalmente na região do Cerrado, onde essa cultura alcança produtividades de 1.200 a 1.500 kg/ha. Com estas produtividades e alta eficiência na utilização de insumos, espera-se ter em nosso país custos de produção competitivos com os daqueles países produtores que exportam para o Brasil. Atualmente, graças aos trabalhos de pesquisa realizados pela Embrapa e instituições parceiras, essa tecnologia está disponível, assim como cultivares promissoras.
Os poucos trabalhos de pesquisa realizados no país deixam claro que a produtividade potencial da lentilha no Brasil é elevada quando comparada com a produtividade média mundial. O melhoramento genético tem sido fortemente dependente do setor público, no entanto estes esforços têm sido frequentemente descontínuos. A continuidade no desenvolvimento de cultivares com adaptabilidade às condições edafoclimáticas do país e com resistências múltiplas a doenças, bom rendimento, qualidades industriais e nutracêuticas, associado a uma melhor tecnologia de produção, podem garantir maiores margens de lucro para os produtores e a competitividade da produção empresarial em nível internacional.
Gerar cultivares de lentilha adaptadas ao Centro-Sul e ao Cerrado do Brasil, com alta produtividade, precocidade de maturação, baixa deiscência, porte da planta ereto e com alto valor nutricional são alguns dos objetivos de projetos de pesquisa e desenvolvimento da Embrapa. Uma alternativa viável, neste caso, seria o plantio de lentilha durante a “safrinha”, não apenas como fonte de renda mas também como adubo verde, uma vez que a leguminosa fixa nitrogênio através de simbiose com bactérias específicas. A introdução da lentilha nos sistemas de produção contribuiria com o aumento da sustentabilidade dos mesmos, uma vez que é espécie de baixa demanda hídrica, além de ser menos susceptível ao ataque de pragas e patógenos.
O fortalecimento de ações de pesquisa voltadas para o melhoramento genético pode ainda contribuir com a redução da importação, como também consolidar o mercado interno fornecendo alternativas aos agricultores brasileiros e ampliando o leque de potenciais ganhos econômicos e rentabilidade. A consolidação do Brasil como produtor de lentilhas, utilizando cultivares adaptadas e sistemas de produção adequados pode levar o país a se tornar exportador da espécie para a Ásia, reduzir custos e elevar o consumo doméstico de fontes proteicas da alta qualidade.
A agricultura brasileira tem em mãos um grande potencial para atender tanto o mercado doméstico de lentilha, quanto a comercialização do excedente para a exportação. Diminuir as importações e ainda exportar excedentes são uma valiosa contribuição do setor produtivo ao equilíbrio da balança comercial, beneficiando toda a cadeia produtiva.
A diversificação de cultivos pela adaptação e adoção de espécies como a lentilha inevitavelmente estimula o fortalecimento da agricultura brasileira, tornando-a mais dinâmica e resiliente, criando oportunidades de incremento de renda e ampliação da classe média rural, importante objetivo de políticas públicas do Estado brasileiro e um dos focos de ação da Embrapa. A identificação da lentilha com atributos da alimentação saudável pode incentivar a criação de toda uma cadeia agroalimentar ao redor da espécie, com aproveitamento de proteínas, fibras, vitaminas e compostos nutracêuticos. Definitivamente a lentilha é muito mais do que uma tradição de fim de ano e seu cultivo pode “trazer sorte” durante décadas!
Warley Marcos Nascimento (Engenheiro Agrônomo - Pesquisador da Embrapa)
Embrapa Hortaliças
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